quinta-feira, 6 de março de 2008

pequenos abandonos




- Faz de conta que não existe nada, que tudo aquilo que a gente vê lá fora está longe demais. Não é tanta mentira assim!

Levantou. Foi como se fosse trocar um disco, mas desviou da vitrola e se encaminhou para a estante de livros. Também não procurou nenhum livro. Apanhou, isso sim, um cigarro. Acendeu.

- Não... não sou tão alienado assim - continuou - Não me olhe com esse olhar reprovador!

- Não estava pensando nada - disse ela - não estou reprovando nada! Acho que você até tem razão quando diz isso!

Ele levantou. Tomou o cigarro das mãos dela e deu uma tragada. Soltou a fumaça para o outro lado. Trouxe o cinzeiro e sentou-se na cama.

Ela acendeu um outro cigarro. Sentou-se também. Pausa.

- Você vê esse olhar reprovador em tudo - disse ela com o cigarro pelo meio.

- E o que você está fazendo agora? Por acaso não está me chamando de paranóico? Ou reprovando minha atitude?

- Sua conduta está intolerável. Você está nervoso demais para o meu gosto. Vou abandoná-lo.

- Claro que vai, eu também não te suporto mais - disse ele e saiu.

Fechou a porta delicadamente. Não fez maiores dramas, não havia razão. Ela é uma ótima mulher, mas o que se pode fazer - pensou. Desceu no elevador. É impossível suportar uma relação em que a paixão se escasseia e dá lugar àquela intimidade perturbadora. Aquela intimidade quase que inquisitiva, Calada. Alguma coisa está sobrando. Chegou à rua.

Havia algum tempo que os dois estavam se sobrando.

Caminhou a Figueiredo Magalhães até a praia. Atravessou com cuidado as duas pistas da Avenida Atlântica. Tomou o caminho do Posto 6. Não via ninguém. Parou para ver a pelada na praia, em frente à Constante Ramos. Sentou-se na calçada com os pés na areia. Reparou no número 6 com a camisa do Botafogo, quando ele matou a bola no peito, deixou-a escorrer pelo corpo, enquanto olhava a colocação da equipe, deu uma esticada em diagonal para o ponta-direita, que emendou de primeira, mas isolou a bola. Gostou do número 6, passou a torcer pelo time dele.

Não ficou ali por muito tempo. Caminhou pela Constante Ramos até chegar na Avenida. Muita gente. Compras de Natal.

- O Natal chegou mais cedo. Sempre mais cedo. Cada vez mais cedo.

Talvez devesse procurar alguém. Mas para que chatear alguém com histórias de romance na tarde. Optou por não importunar. Talvez esteja passando um bom filme no Copacabana! Ou no Art-Palácio, ou no Metro - não o Metro demoliram - ou uma boa reprise no Jóia.

No Copacabana estava passando uma porno-chanchada. No Art, um filme de ilha. Detesto filme de ilha! - pensou - é horrível ver pessoas numa ilha quando se está é em Copacabana mesmo. Pois é, o ruído da rua atesta. No Jóia Gritos e Sussurros - Não! Pela terceira vez, e hoje, não!

Desistiu do cinema. Subiu a Santa Clara, entrou na Modern Sound. Não demorou: é duro ver tanto disco importado quando não se tem grana nem prá comprar nacional! - refletiu. . Continuou subindo a Santa Clara, atravessou a Toneleros, entrou na galeria que dá no Bairro do Peixoto. Sentou na praça, num banco.

Queixo apoiado na mão, cotovelo no joelho, pé fincado no chão. Levantou. Atravessou a praça, continuou pela rua em frente, rapidamente. Virou à direita. Caminhou apressadamente.

Entrou no edifício. Subiu no elevador. Abriu a porta com a chave. Encontrou-a no quarto fumando - quem sabe - ainda o mesmo cigarro.



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