sábado, 27 de dezembro de 2008

Quem é aquela mulher?





Deixe que eu te leve no sonho.
No sonho que meu corpo embala,
que a palavra cala,
que o pensamento voa.
Deixe que o calor te chegue
infiltre em teus poros,
erice teus pelos.
Escute meus apelos,
afague meus cabelos.
Arranhe minha pele.
Deixe essa fera,
esse fogo aberto,
essa mulher oculta,
renasça em carne viva.

Viva meu esforço,
minha luta.
Como me contorço,
como me refaço,
como que renasço.
É que para mim existe algo
diante do sonho.
Existe uma mulher real,
uma mulher que toco e que amo.
Existe uma força suavemente macia
que comprime meu peito,
que me engole a boca
que é meu próprio sangue,
na minha própria magia.

Existe uma mulher oculta,
renegada, calada
que me agarra e se integra comigo
num único momento,
num único organismo ofegante.
Depois se cala e me renega.
E já é outra que fala,
que me expulsa do leito,
que nega, que isola,
que repudia.

Quem é aquela nos momentos de entrega?
Quem é aquela que comigo revira os lençóis?
Quem é aquela mulher?



Metamorfose Blues




O pensamento, essas mãos remotas
que te tocaram.
Te transformaram, fluindo em ti
uma vontade louca.
Um gosto acre, de amor,
invade a boca.
Uma sensação de contradição
revela o intangível.

Dissera que o prazer
supremo libera a alma.
E traz a calma nas manhãs
dormidas ao relento.
Mas o pensamento
navega em turvas águas.
E nas mágoas que brotam
em teus segredos.

As mãos do pensamento
acharam teu recanto.
E a voz te penetrou
em íntimos encantos.
E o gozo inundou...
E a noite prosseguiu...
E um choro convulsivo
te descobriu em ti.


segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

O bar




Numa esquina da rua,
escancarado, há um bar.
De longas prateleiras,
garrafas a convidar,
para longas bebedeiras
nas noites de luar.

Sempre que lá passo
há um gato a ressonar.
Garçom parado ao canto,
balcão vazio a brilhar.
Passo e se oferecem
mil lugares prá sentar.

Mas sempre que por ali eu passo,
mesmo que queira entrar.
Mesmo que ouça o chamado,
não faço mais que olhar.
Como se fora um cenário,
fingindo que é lugar


desesperança




essa desesperança
que bate e derruba
acaba com o ânimo
e cala as palavras

e o silêncio chega
como uma ausência
e toma conta de tudo
envolvendo a noite

gostaria de voar
nesta madrugada
encontrar meu sonho
sem pedir licença

mas o grito cala
a cabeça lateja
os músculos retesam
e eu só quero dormir


quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

esperança



eu já entrei
nesse amor derrotado

pela vida
pelo tempo
pelo clima
pela justiça

a vida
deu-me muitas chances
todas ilusórias

o tempo
foi cruel e passou
depressa demais

o clima
insiste em aquecer-me
com os seus calores

a justiça
que só existe
para não mudar nada

ainda assim
eu te vejo
e levo comigo
uma esperança
no coração



segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

desvãos

 
 
sim, sou artista
sou artista da arte
de desfrutar o tempo
e o meu tempo contigo

o tempo é raro
se encolhe
na vagarosidade do dia
e se estreita na noite
quase imperceptível
de meu ressonar

o tempo me foge
escorre entre
os meus dedos
e eu não consigo
agarrar-me
às salências
e reentrâncias
do meu desespero

desespero da vida
que se escoa rápido
pelos desvãos
quando não estou
contigo

 

O Trem



O tempo escoa-se vagaroso
como trem pesado e fumarento.
Trem de fumaça cinzenta.,
indo e voltando,
carros engatando,.
Vagões pesados, sinetas.

Vai-se formando o combóio.
A locomotiva percorre
já um grande trecho.
Fazendo manobras
e fumo cinzento.

E o tempo, paciente,
adia sempre a partida
para o seguinte momento.


Sim, meu bom Álvaro, é cansaço

 
 
É cansaço de cometer o suicídio
diário de ver almas que já
crescem pequenas e perdidas
pelo temor de sair de dentro
de si mesmas.

É cansaço. É cansaço de perceber
com essa maldita (e dolorosa) consciência
como as pessoas negam a si mesmas
e se auto-destroem, todos os dias,
de diferentes formas e sutilezas.

É cansaço. É cansaço de prever
sempre os mesmos cataclismas
pessoais retratados e, lamento,
Álvaro, a gare a que se volta
agora é sempre a mesma.
E só se serve o amor como
dobrada fria.

É cansaço. Sim, é cansaço.




Ver aqui: http://claudioalex.multiply.com/reviews/item/899  

[eu fico pra morrer]




eu fico pra morrer
tem hora que é melhor morrer
do que ficar vagando
pela sala
pelo quarto

a incerteza
o risco de viver
a bebida no copo
e tão pouco é
para dar substância

não não quero falar
não posso dizer
é segredo

as paredes parecem
ter inchado
absorvido a mágoa
direto na alma


sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Não Escutas

Não
Tu não escutas
Nem o vento tu escutas
Nem a minha canção

Como escutarias
o teu coração?

desistência



Quando um amor
acontece
sem esperança
é porque a vida
e nossos sonhos
estão se esvaindo

Perder um amor
por inabilidade
ou cansaço
é sinal que perdemos
toda esperança
no ser que somos

Então, só nos resta
recolher a melancolia
inconsciente
levá-la à varanda
para ver o sol
ir-se trás dos montes

E chorar em silêncio
um perdão que nunca virá



percepção

 


Este que sou
Eu já nem sei
O que ficou
passou


Ora, o saber
é mais canção
do que saber
razão


Enquanto isso
por enquanto
por favor
me faça o café
passa para mim
no canto do pão
a manteiga
ou requeijão


Este que sou
Eu já nem sei
O que passou
ficou


quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

O Dia Seguinte

Toda renovação - para ser verdadeira - é uma transformação. Toda transformação se baseia no desapego e no abandono de ser. A morte é uma transformação. O amor profundo é uma transformação.

Toda transformação - se consciente - é dolorosa. Porque envolve o rompimento da casca de um ovo e uma abertura para uma dimensão para a qual não temos a menor familiaridade.

O absorver-se no cotidiano - carpe diem - viver o aqui-e-agora, é também uma fuga de si mesmo. Porque o cotidiano é também uma ilusão (maia). Podemos, muito bem, escondermos a consciência de si mesmo vivendo plenamente - e febrilmente - o cotidiano.

Toda alegria e toda tristeza infundadas seriam igualmente idiotas se fôssemos totamente conscientes de nós mesmos. Não somos. Temos apenas vislumbres efêmeros de nosso ser. Há, então, processos e ressonâncias que desconhecemos agindo sobre nosso ser. Processos advindos de contatos intrapessoais e reaçõees do ser no mundo.

O reconhecimento da beleza pode advir tanto da tristeza quanto da felicidade. A melancolia pode ser um estado perceptivo permanente ou provisório. Creio que devemos tratar com respeito e buscar compreensão da dor e da melancolia dos outros, talvez porque no "outro" esteja uma parte de nós mesmos.

O tempo cronológico (cronos) que marca as nossas festas não é uma lei que nos obriga a sermos felizes. O tempo cronológico, bem como as festas, é meramente uma convenção mundana. O que vale é o tempo interno de cada ser (kairós) na busca de sua transcendência (mudança, transformação, renovação) e o que realmente importa é o que cada um sente. Se não corremos o risco de cair num animismo maquínico que nos obrigaria a ser feliz, privando-nos de nossa autonomia de ser.

É o que o mundo quer: que sejamos felizes no momento adequado e tristes nos momentos adequados. E esse adequado é adequado para o mundo e não para nós. Caindo nessa esparrela deixamos de ser sujeito e viramos mero objeto.

Será que aquilo que o mundo nos apresenta é realmente uma perfeita e harmônica razão para nos despreocuparmos da dor que por ventura sentimos? O tempo cronológico, as datas do calendário, mudam realmente alguma coisa em nós?

Será que o abandonar o velho e simplesmente caminharmos, ávidos, leves, livres e soltos em direção ao novo não é a mesma ideologia do descartável vista por uma fantasia de aparente beleza?

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

compreensão



o sol trespassa
o horizonte
uma nova noite
uma nova lua

mas não ouvirás hoje
do uivo do lobo
que mora em mim
chamando-te em lamento

ouvirás, nesta noite
um canto doce terno
um canto que te ecoa
leve sussurando

um canto que te sabe
te traz e aninha
no meio cálido
do meu abraço


lamento

 

não, eu nao quero
escrever mais nada

de repente eu sinto
as palavras vazias

apenas compostas
e bem arrumadinhas

não, eu acho que
não tenho nuita coisa

de novo a dizer
e lamento

ter dito tudo
só para os ventos


 

saudade



ando pela casa quieto
a noite já vai
avançada

rói os desvãos
uma presença
que não pode ser

essas janelas
noturnas cansadas
já dormem de ser

e eu olho
além do horizonte
cinzento


 

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

desilusão

 

meu dia
trespassa o sonho
com um punhal

desmascarados
de sua magia
os olhos vertem

gotas de sangue
sobre o branco
da folha papel

 

persuasão



um poema de amor
por que um poema de amor?
dizer sobre o amor
é buscar uma lógica
onde só há sentido

não, não posso persuadir
o amor não é um caminho
de persuasão
é um encontro ao acaso
sem pretensão de ser
aquilo que já é


segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

ausência




há uma tristeza
que habita no ar

alguma coisa falta
no que respiro

o dia anoiteceu
vazio de conceitos

e no meu peito
ronca de paixão

uma agonia
 
 


sábado, 6 de dezembro de 2008

As palavras




As palavras
devem ser ditas
para a compreensão
suave
leve
simples

Ofertadas
como água
de uma fonte
cristalina


sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

[Nosso amor poderia]




Nosso amor poderia
desenhar-se
com contornos de drama

Mas eu prefiro
oferecer-te alegria
todos os dias

Para que
te lembres mim
com leveza



quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Fragmento




Em todas as histórias de amor que leio, que vejo, que fico sabendo... eu me coloco ali e te vejo. Por mais duro que seja o drama, ainda seria melhor que o abandono silencioso a que nos condenamos, sem pena, sem luta e sem qualquer esperança.


sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Interlóquio com a Morte




Você é água e
para onde corre o rio?

Falta o teu encanto
e as tardes já são de novo

amenas
pequenas
apenas

Falta o ar
penetrado ao acaso,
narinas adentro...
gélida manhã.

Num esforço supremo
para respirar o futuro...
perpetuando uma esperança
renovada no clarão que anuncia
o dia.

Mas nada...
falta-me...
Minha solidão não é mais cheia.

Nem a Lua é mais
tão expressiva e mágica.

Falta-me tudo.

Um poema de amor
impresso num papel
dentro de uma poça d'água.
Lama.

Um jardim
tomado pelas macegas ao vento
abandonado ao tempo.

Chuva...

Jardim de cemitério de cidade
abandonada.
Onde até as almas penadas
pediram exoneração de ser.

E eu aguardo do toque descarnado
da Velha Senhora,
no meu ombro,
dizendo da hora.
Qual nada...

Gradis enferrujados...
novelos de mato
levados pelo vento.

Mármores rachados.
Em vão procuro teu nome,
teu retrato,
nas lápides.

Mas aqui não existe mais tempo...
nem presente,
nem futuro,
nem passado.
Um limbo
para quem sofreu
o último
de todos abandonos.
Um lugar
que não é...

para seres
que não são.

Para seres insignificantes
que nem merecem o Inferno.
Seres que nem pecaram...

Nu.

Misturo-me na lama de águas
que não são mais tuas.
Num último desejo, implorado,
de voltar ao pó.
Não há mais nenhuma lágrima
que traçasse um mínimo sinal
de desespero.

Uma carcaça que nem apodrece.
Perpetuada no que não há
nem mais sofrimento.
Nem bom nem ruim.
Nem vida nem morte.
Um resto
de substância química
inócua,
inofensiva para o Universo.
Inconsciente.

Não-ser.





À Praça São Salvador




As tardes são agora muito diferentes
nestas velhas paragens
onde vivera momentos de juventude
que se passaram, não tão rápidos,
como o vento que se espalha
e a brisa que sopra agora.
Juntar pensamentos remanescentes.
Montar um velho quebra-cabeça
perdido no tempo.
Quantos pensamentos se passam
como passa o vento?
Velhos cenários
substituídos por tantas diferenças
uma máscara no primeiro plano.
Transmutada pelas fachadas do comércio
e pelas pessoas que passam.
Uma velha praça, sim, velha.
Recuperar um velho sentimento de
de presença.
Recuperar uma velha fronteira
de existência.
Onde será que estamos?
O que contam este velho piso
de pedras portuguesas?
O que contam estes fantasmas
que se foram?
Continuamos vivendo um viver distante.
Distante como era o nosso futuro.
Distante como é o nosso passado.
Por muitas vezes andei
por essas calçadas.
Naquelas eras
nunca sentei nesses bancos.
Carreguei por estas calçadas
todos os sentimentos
de paixões adolescentes.
Algumas das mesmas pessoas passam
com fisionomias quase irreconhecíveis.
Novas pessoas passam também
com fisionomias irreconhecíveis.
Como foi esta transformação?
Que fez o tempo?
Como se sucedeu?
O que ocorreu no meio de
todos aqueles velhos caminhos?

Fui eu que saí para longe,
em corpo e espírito.
Acho difícil retornar no tempo,
pelo menos para entender,
o percurso daquela velha linguagem.
Novas palavras serão necessárias
para devolver a chama.
Novos sentimentos devem urgir
para retoma o fio dos anos.
Mas nada trará de volta
os meus velhos mortos.
Carregam-se velhos pensamentos.
Esparrama-se a memória.
A busca do elo
de vivências interrompidas.
Um velha mensagem
sobreposta
em tons de tijolo
mais novo.
Sobrados que se remontam.
Se reconstroem.
Por aqui
não conheço nada!
Por aqui
eu conheço tudo!
De repente
visionâncias familiares
erodidas pelo tempo.
De repente
velhos comerciantes
que mudaram a fachada.
De repente
velhas fachadas
que mudaram os comerciantes.
Tanta e quanta coisa!
Aqueles velhos casais de namorados
geraram novas fisionomias
que se restauram numa
velha juventude.
Quantos gestos perdidos no tempo!
...
São tardes que se perderam.
São velhos verões medianos
vividos pela esperanças.
São velhos futuros esperados
alguns que não se impuseram.
São transformações urbanas
que se sucederam
nas fachadas dos prédios
e nos homens.
Este velho som de blues
perdido numa vitrola recente.
Talvez uma vontade premente
de presente, levou a desligá-lo.
Este fluxo de realidade
mal amanhecida.
Que o cenário não acompanhou.
Onde estamos, velhos rascunhos?
Velhos esboços de remanescências futuras.
Esta nova marca de cerveja.
Esta velha atmosfera.
Transformações.

Velhas cabeças de comerciantes.
Velhos pensamentos de ganância.
Mesmo sem concordar.
Mesmo sem discordar.
Apenas a reparar transformações.
Desconexos.
Anarquia.
Em um mundo que guarda
um velho registro antigo.




Nem Sabes




quando a saudade nem é tempo
quando o tempo nem é convenção
quando um minuto é ano
quando a noite não passa
mesmo estando cansado

a procura das horas
batendo em tantas portas
por acaso, sem esperança
caminhando pela casa
enquanto dormes

a madrugada adentra
e é dona do desespero
e todos os sonhos habitam
o mesmo endereço distante
de minha desesperança

a noite urbana
e eu isolado no quarto
os carros lá fora passam
e eu só escuto silêncio
enquanto sonhas

e quando o cansaço
já é tão cansaço
eu arrasto os pés para a cama
e ali desmaio e durmo
e no entanto nem sabes




A Máscara da Verdade




Um dia, como se o tempo brincasse
de repassar a história comigo
e no chão de minha frente espalhasse
reflexos de nudez sem abrigo.

Pedaços de espelhos como lascas,
fragmentos de mim sem véu,
apontam na emoção feito facas
que não agridem, mas me fazem réu.

A consciência do real que desabrota
e o perceber da farsa cada dia,
conduzem ao julgamento que denota
o conviver entre verdade e fantasia.

E a vida ao rejeitar minhas imagens
e fazendo-me a vontade oprimida,
atira as ilusões entre as bobagens.
Tal qual verdade que não vier vestida.






Avelórios




Ela nem pode sentir o que sente,
mas no entanto, não é infeliz.
Se ela chora, nem se lembra.

Apenas junta as letras
no jogo de avelórios
e compõe beleza,
com simplicidade e gesto.

E sorri.

Quando sorri
ela me enche
de ternura
e esperança
de porvir.





quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Quando Longe do Mar



Quando longe do mar,
falta-me ar
e fico incompleto
de ser e estar.

Falta-me sol
sentido na pele,
calor que me toca
e me estoca de amor.

Falta-me som
no meu próprio tom,
no meu ambiente.
Falta-me sal
no beijo na boca.
Falta tempero

Falta-me luz.
Falta-me azul.
Falta-me cor.
E o odor,
o cheiro de amor
não existe no ar...

Música de Manuel Martins.
Letra de Claudio Fagundes


 Claudio Fagundes - Quando Longe do Mar (Mix 2)



Nada




Um dia irei escrever mais
sobre linearidades e complexidades.
E ensinarei a você a lição
direitinho
sobre os homens
e suas parcas manhas.

Um dia, falarei para você
sobre verdades e falsidades
sobre sofismas
sobre hermenêuticas
de buscas de significados
e de sentidos. Hoje não.

Um dia, quando sentir-me disposto,
falarei de pontos de vistas,
de perspectivas,
de objetos vistos
através de cristais.

Um dia, se eu tiver saco,
explicarei que somente as estrelas
podem ser vistas através de
alguma analogia.
Só elas... que estão longe
e são intocáveis.

Um dia, se não me causares náuseas (ainda),
falarei de metafísicas e dos deuses,
dos verdadeiros, dos imaginários,
e daqueles que ainda não inventamos
para explicar a nossa profunda ignorância
de nós mesmos.

Mas hoje, eu estou cansado,
diga-me: qual foi o resultado do futebol?
Passa-me aquela cerveja choca que deixei
pela metade, e deixe-me só
- com meus arrotos, peidos e mazelas
e minha dor que através de ti é intangível -
em minha própria madrugada.





Tudo




Quando eu bebo,
bebo tudo.
O licor desejado e aquele
que ainda couber...

Talvez ainda sobre espaço para beber
para anestesiar a ressaca de ontem.
Penetrar no recinto dos fantasmas
e participar dele.

Saber-se na vertigem
das perdições inconcebíveis.
Saber-se à boca da sarjeta
os restos de lua e luz
confusa, difusa
das percepções da noite.

Sim, o absinto da visita de Netuno
com seus mares
com suas águas
onde tudo pode ser e nada é.

A ingestão do âmbar
o cheiro dos perfumes...

A náusea de saber-se
uma pequena tristeza
na multidão dos seres
na noite de todos os desesperos.


Quando eu como,
como tudo.
Como se buscasse saciar
a fome do mundo.

Como não fosse o amanhã
o construtor do prato feito.
Como se fosse necessário
criar a reserva para
as sete vacas do porvir.


Quando eu amo,
amo tudo.
Eu te quero,
e quero toda.

Quero beber e comer de ti
pois é essa a verdadeira sede
e fome a ser saciada.

Pois é esse o verdadeiro desejo
e não é só de prazer.
É a real necessidade de ter tudo
da mulher que amo.

E saber-se inteiramente contido
em cada gota de esperma,
saliva, sangue ou suor
por ti e por mim derramada
imolada, ofertada...
no perfeito ato de entrega.

Sem meias porções,
sem meias sensações
sem mascarar as ilusões
e sim esculpir na carne,

construir nas porosidades
de todos interstícios
a mistura de humores
o miscigenar de espíritos.

Assim, cada vez que eu te amar,
te amarei por inteiro
e você inteira.

E na explosão
meu gozo será com o teu
para dar todo impulso
e te encontrar.
flor escancarada,
pronta para germinar
e criar dentro de ti.

Quererei ser teu
dentro de ti. Vivo.
Vivo, carne, alma.
Ser.
Todo.
Teu.





terça-feira, 24 de junho de 2008

o que eu quero




o que eu quero
o que eu quero

é escrever
sobre tua pele

sobre tuas costas
sobre os teus seios
sobre teus lábios
sobre teu sexo

uma escrita
sobre tua pele

sim sobre a tua pele
a tua mesmo
a tua pele


domingo, 11 de maio de 2008

de tudo que existiu





de tudo que existiu
ou sequer existiu
ou que houve um dia
ou sequer aconteceu
de tudo que foi
ou poderia ser
quiçá nada
de tudo aquilo
nada daquilo

não
não são lembranças
são sentimentos presentes
aqui e agora
cá comigo
talvez contigo

o que sei de ti
não és tu
é o que construí de ti
em mim
o que criei de ti
pode ser tudo de ti
pode ser nada de ti

eu te pintei com cores
talvez que não julgas ser
é porque nem eu
nem tu
sabemos de ti
tampouco de mim

eu coloquei nos teus lábios
a cor do desejo
eu imaginei o teu seio
me provendo este desejo

eu considerei
que existem ilusões
que valem a pena
de serem vividas
e esta vale

e se todas as cores
são cores imaginadas
criadas
metamordoseadas
eu te fiz uma proposta
de criação de um quadro

sim
porque o amor não existe
porque o amor é ilusão
mas podemos amar tal ficção

o amor cumpliciado
tramado no oculto de dois
é uma construção de arte
pela alma
de dois indigentes
que se perceberam

e assim é


sobre o trabalho



a não ser
que o trabalho seja a tua vida

não sobrará
muito tempo para viver

vem fala comigo





vem
fala comigo
porque teu silêncio
me encanta

tanto me encanta
que me enlouquece
porque
é um silêncio
que fala

e fala tanto
que eu me confundo
com tantas coisas
que ele diz

e diz mais
muito mais
do que eu poderia
pensar ou imaginar
em meus sonhos

vem e fala
diga qualquer coisa
diga algo que me distraia
desses sussuros do vento
que me contam tudo

vem fala
antes que eu enlouqueça
e te queira ainda mais
do que eu ouso querer
e te quero

dissolvência


Três da tarde. O sol fraco, determinado pela brisa outonal, debruça-se sobre as pessoas encasacadas que circulam ao meu redor. Eu penso, logo não sou. Finjo viver através da mera observação daqueles que passam. E escrevo linhas descritivas, dizendo apenas o que vejo e logo distorço, quando internalizo as minhas sensações de vivências.

Não. As minhas interpretações do mundo e das coisas não são o mundo nem as coisas. Trata-se de uma criação de minha mente que delira. Pensar é estar doente dos olhos(*). Sim, estou doente dos olhos. Já faz algum tempo que a miopia reduziu e, no entanto, perco a nitidez dos contornos e a percepção imagética torna-se embaçada e sem brilho. Já não consigo ver tantas estrelas.

Deliro. O que observo são visões inimagináveis dentro de uma nebulosa. Sou eu que dou os contornos. Que passo por cima deles um lápis delineador traçado por minha mente insana. Crio fantasmas que não existem e não percebo os que existem.

Falham-me também os ouvidos. Um zumbido persiste a todos os silêncios. E distorce as palavras e ruídos que me ambientam. Distorce a música que toca e pede que eu a ouça com ouvidos de maestro. Decodificarei seus sentidos e perceberei que o concerto que toca vai além do infinito.

Mesmo com todo incentivo de cores e sons, eu não permaneço.

Tomo um caminho estranho no oceano de minhas significâncias e dali descolo para o universo paralelo de minhas divagações.

É onde geralmente estou e onde me encontram. É onde o tudo é possível e as ilusões perduram. Lá não é preciso conviver com qualquer senso prático.

Já não me seduz a materialidade das cousas. As cousas inexistentes que eu mesmo crio não precisam da matéria dos mundos. Convivem em um estado adjacente da razão. Não mais cominam com o sentido público do cotidiano. Viajo no tempo. Viajo no ser que sou e que flutua numa insustentável leveza(**).

Mas, no entanto, sempre há uma cela. Não importa o tamanho(***), nem a área circunscrita pelas paredes da própria consciência. As paredes que aprisionam e me encolhem.

Nessa ânsia de caminhar, de dar asas, de imergir, de vagar... sempre esbarro nos limites do que não sou. Sou bem mais limitado do que transpareço. Para que ou para quem transpareço? Para mim mesmo, sempre na mais completa solidão. E não pode ser mesmo diferente.

Nesse percurso, de vez em quando, eu vislumbro um vulto. O desenho etéreo de uma alma humana. Antes, eu procurava desvendar tais vultos na esperança de encontrar neles vestígios de mim mesmo. Hoje, já não me preocupo tanto em transformar essas visões em encontro. Não é ali que me encontro. São almas penadas, como eu, buscando a si mesmas num limbo de desencontros.

Não tenho mais a expectativa de encontro. Já vivo no limite de meu próprio universo e desejo transpassar tais umbrais.

Isso também é mera certeza dos meus delírios. Os umbrais que percebo certamente não existem. São meras construções que eu mesmo construo, para justificar as sabotagens que crio para o meu próprio devir.

Não, nada sei do além-mundo, nem do eu-mesmo. São alucinações que procuram uma utopia.

E, no entanto, cá estou no cotidiano. Sentado em um grande salão e assistindo ao mundo que passa. As pessoas sequer me notam e eu ainda busco um olhar.

E nas vezes que encontro me apavoro e corro desesperado para os meus confortáveis delírios.



03.05.2008



Notas:

(*) Lembrando Caeiro, Aberto em O Guardador de Rebanhos.

(**) Lembrando Kundera em A Insustentável Leveza do Ser.

(***) Lembrando Álvaro de Campos em Là-bas, Je ne Sais Où.

sexta-feira, 21 de março de 2008

bom dia, tristeza!




i

bom dia, tristeza!
nada se absorve
ou se perde na beleza.
o inverno da desesperança
consentida.
o silêncio do pulsar
admitido.
bon jour, tristesse!

ii

a conspiração noturna,
o advento da respiração
da brisa da madrugada,
um salutar reflexo de continuidade.
implorar presença
que preencha a falta
do tudo.
da totalidade de tudo.
sinto muito,
se as manhãs são nuas,
se tuas tardes são vazias
e o tédio impercebido resvala nas quinas
dos móveis.
se o volume da rádio-vitrola
faz as paredes purgarem
uma canção inesperável.

iii

se antes havia
um tênue ressonar
ao lado de minha abstinência,
hoje os resquícios
de presença
são absorvidos
pelos meus pelos que se eriçam
ao toque invisível do desespero.

iv

play me a ring!
sing me a song!
a song of my desperate christmas!
i'm lost...

v

um inexplicável
suór de nossa vadiagem.
na tarde, na manhã,
na presença noturna,
a atmosfera que envolve a tudo.
sinto saudades,
dessas tardes.
o telefone soar
e tudo ser...
a certeza do dia
frente à obscenidade
permitida.
o toque do espírito
na pele.
o contato profundo
nas partes impuras.

vi

cravar os dentes
na ausência de tua carne.
lamber o vazio
onde estariam tuas portas.
e o gosto amargo
da secura da falta de teus sumos
transborda em lágrimas
da mais pura incerteza.

vii

deita comigo
o silêncio
da invalidez
das possibilidades.
deita comigo
a fraqueza que nos levou
e te conduziu para perto do
cataclisma.
permanece comigo
a falta de teu sussurro.,
do teu gemido,
do ressuscitar
das velhas
e inesperadas
paixões.

viii

bom dia, tristeza!
a porosidade da língua
que guarda o sabor
delicado
de tua saliva.

ix

impressa em mim
cada emoção,
cada toque,
cada sensação
esculpida no fundo.
e as limalhas
da alma
permanecem
espalhadas
no ambiente do quarto.

x

guardo comigo,
numa coleção
de fragmentos,
a ansiedade
da volta.




domingo, 16 de março de 2008

eu cantei canções



eu cantei canções
descrevi em verso
apontei no universo
algumas estrelas
a serem seguidas

eu te vi mais linda
eu te vejo ainda
a percorrer caminhos
traçados de tua alma
em pergaminhos

mas, a noite é escura
e a solidão insinua
o medo de enganos
eu te vi toda nua
nas mãos de estranhos

eu cantei toda sorte
de líricas imagens
te enviei mensagens
sobre a vida e a morte
e não quiseste

eu quis dizer tanto
eu falei com todo encanto
mas não quiseste
nem sequer ver soubeste
que era tudo só pra ti




sábado, 15 de março de 2008

ah, inquietado coração






Ah! Inquietado coração,
chora tua lucidez
que a consciência traz
a dor que a faz.

Ah! Inquietado vagão,
da eterna gare razão,
por que progrides sempre?
Cruzando os dormentes do tempo
comboio de minh’alma aflita.
Calma que a dor fria excita.

E quão longe te faz,
oh! Paz, querida paz,
onde te esconderás,
és também uma ferida.

E de repente surgirás,
pois a saudade te traz
como uma dor adormecida,
de uma gare ultrapassada da vida.


a Álvaro de Campos





noturno vermelho




esta noite beberei
o vinho de tua taça
e deixar-me-ei levar
pelo que insinuas

mergulhar-te-ei
em mentiras tuas
mais absurdas
cruas, de todo

entregar-me-ei
ao idílio, filho
etílico do vício
teu desde o início

quererei perder-me
em teus meandros
e lençóis bordados
instinto dos portais

tintos tais, profanos,
dos vinhos mais carnais
derramados tais
sobre os panos

teu espírito em reflexo
à taça jazente semi-plena
entre nós, circunflexo
laço, boca, cena

e a vaga-luz difusa
as mentes deixadas
ao acaso dos desejos
ensejos do porvir

e a luz desnecessária
entrega-se à noite
e o absinto de Netuno
afoga-nos em humores

quem eu? quem tu?
na comunhão de sentidos
na integração de fluídos
quem somos?




quarta-feira, 12 de março de 2008

dias cinzentos



horizontes plúmbeos
delineiam lágrimas
de minha amargura.
mas a tarde traz um reflexo
por de trás das nuvens.
nuances de beleza perdida.
um noturno premeditado
desde outra existência.

o piano indica
as pegadas do tempo.
as notas seqüenciadas
vibram nas cordas tensas
tocadas pelo martelete.
uma gota de sangue vivo
escorre, despreendida,
desde as pálpebras
e trai o racional dos dias.
que trai o prazer
acalentado no cotidiano.

o cadafalso assombreado
pela prata de uma lua côncava
trespassam
a cobertura das nuvens
que aveludam
a noite premeditada.

frestas de veneziana
vincam o meu sono.
e me levam,
no espectro do luar,
para paisagens indistintas,
nebulosas envolventes,
de carícias distantes.

a sutileza do veludo.
azul de prússia.
entorna-se sobre tal
a gema de um ovo,
um amor fugidio.

o toque do olfato
no cheiro da palha úmida,
a tristeza de casebre
nos cômodos de alvenaria.
a vaziez dos interstícios
o vácuo daquilo que preenche o espírito.

como incompreender?
como deixar de captar
os sinais do indivisível?
deixai apenas que a preguiça dos fatos
elevarem a mornidez dos instintos
e pactuem para que se cataclisme
lentamente
a hora chegada
e a ida para outro lugar.




redes de interação e a sociedade da informação




Uma rede de interação de conhecimento é formada por grupos de pessoas e/ou organizações que trocam experiências com a finalidade de integrar estudos e pesquisas com afinidade temática.

A princípio, a formação e estruturação dessas redes seria independente da tecnologia da informação. Mas não se pode negar que o implemento de eficiência e produtividade cresceu sobremaneira com o surgimento de uma rede mundial como a internet e com o desenvolvimento constante dos sistemas computacionais. Atualmente não existem mais fronteiras para a implementação dessas redes, que dão um sentido universal ao conhecimento.

Estamos falando de grandes gênios da humanidade interagindo entre si? Sim, estamos, mas já há algum tempo que se deixou de personalizar a genialidade. Não que tenham deixado de existir humanos geniais, pelo contrário, a integração de inteligências resultou num sentido maior da genialidade. As inteligências individuais espalhadas pelo universo, integradas entre si pelas redes de conhecimento, corporificaram um organismo social em uma nova dimensão. É o fundamento da denominada "sociedade da informação".

E nessa sociedade a informação e o conhecimento passam a ser patrimônio da humanidade. Dado que todos se integram para produzir informação e conhecimento, teria sentido falar em propriedade individual ou corporativa do conhecimento e da informação? Não, certamente não podemos mais estabelecer limites que definam a propriedade intelectual individualizada de A ou B ou C ou... N. Nem mesmo nas artes isso seria atualmente possível. Poderia se dizer que um autor literário, ou um músico, ou um cineasta, ou um artista plástico, criaram sua obra do nada? Única e exclusivamente de sua genialidade criativa? Ou seriam células de uma rede integrada de conhecimento? Células integradas socialmente, devolvendo a suas contribuições produtivas à uma sociedade que as mantém. A produtividade intelectual - artística e científica - é patrimônio da sociedade da informação. E a sociedade da informação não é definida em indivíduos, nações ou corporações: é universal.

Na sociedade da informação o conhecimento é um bem comum. E isso significa que o conhecimento pertence a todos e é função social disseminar o conhecimento para que possa ser incorporado ao indivíduo em sua produtividade cotidiana.

Em outras palavras: todos têm direito a aprender para seu próprio desenvolvimento pessoal.

Assim, o papel da educação na sociedade da informação é o de redistribuir a riqueza do conhecimento.




o silêncio em rede




Acreditamos que todo relacionamento de pessoas em grupo deve ser mediado por regras. Pensa-se assim numa visão bastante genérica das relações humanas.

Desde que comecei a conviver com grupos em rede, tenho convivido com inúmeras tentativas de padronização de regras. E poderia dizer uma coisa: o grupo faz as regras e elas se estabelecem com a convivência. Há, portanto, necessidade do tempo e da vivência em grupo. Num grupo de aprendizagem em rede temos que pesar, interpolar e mediar pelo menos dois antagonismo:

a) de um lado a inexperiência digital, a estranheza ao meio, a timidez, o medo do erro, o receio da reprovação etc, coisas características de quem está começando a vivenciar um novo universo.

b) do outro lado antagônico há a uma posição daqueles que já dominam a tecnologia e o mundo digital e desejam objetividade e síntese para que seja mais útil aos seus propósitos.

Bem sabemos - e os economistas nos ensinam - que os recursos são escassos e exigem restrições. Mas, desde que se criou essa máxima racional, muito se viu passar pela avenida da existência humana. E hoje sabemos que a racionalidade não é, obrigatoriamente, a menor distância entre o ponto de partida e aquele que é o nosso objetivo. O rio, em sua sabedoria cósmica, nos ensina isso através de meandros.
E não é por coincidência que místicos iluminados e poetas adiantados no tempo utilizam o rio como parábola de vivência e aprendizagem.
Sabemos que estamos nos primórdios de uma Nova Era. Tudo está se transformando com uma rapidez quase que imperceptível aos nossos sentidos e compreensão. Mas já sabemos que a conexão em rede é o grande catalisador dessas transformações e falamos que a exclusão digital é uma barreira a ser vencida. Um ponto de mutação quase tão importante - talvez mais - que o analfabetismo. Assim, fiel aos princípios da sociedade em rede, preciso dizer aos educadores que:

a) não se desconectem uns dos outros, pois sem isso teremos que redescobrir a roda diversas vezes;

b) sejamos tolerantes com aqueles que julgamos ignorantes, pois a sociedade precisa de todos.

E eu, particularmente, quero escutar justamente aquele que não sabe. Ele tem muito a ensinar e eu preciso aprender sempre.

Assim, todos, ignorantes e analfabetos digitais principalmente, falem e escrevam bastante. Porque ao jogar a mensagem dentro da garrafa no oceano da Grande Rede, um dia, em muito menos tempo que se pensa, ela chegará ao destinatário e o elo com o futuro será permanentemente renovado.

A sociedade em rede admite tudo: menos o silêncio. O silêncio não precisa de tecnologia de meios, nem de sabedoria, nem de pessoas. É como uma sala de aula vazia.




terça-feira, 11 de março de 2008

insanidade

a minha insanidade
é criar equilíbrios perfeitos
amores perfeitos ou imperfeitos
ou perfeitos em sua imperfeição

é insanidade
compor uma harmonia
sem acordes perfeitos
em polifonia

é uma insanidade
deduzir as minhas deduções
atravessar os meu muros
infiltrar a rua
com os delírios
que acredito
é insanidade

acreditar na possibilidade
de uma epidemia
de uma febre benigna
que produz encontros
de corações e almas
é insanidade

É a mais pura insanidade
acreditar que tudo pode dar certo
apesar dos indícios
de profunda distância
entre as palavras
é da maior insanidade

tambéme é
as figuras que me maravilham
em sua perfeição
embora sejam assimétricas
as linhas e as cores
que plasmam
a minha insanidade

eu vivo trancado em meu quarto
imaginando loucuras
construindo quimeras
que não fazem sentido
a não ser para mim

eu junto quebra-cabeças
eu desvendo labirintos
construo epopéias
que não existem
e apenas reproduzem
a minha insanidade


segunda-feira, 10 de março de 2008

hotel do tempo

Tua nudez
exposta ao filtro de luz
da cortina de gaze.

Quarto clássico de mulher,
ambiência mítica
de mãe e sombras
ritmo de relógio na sala de jantar.

Cama larga das cambraias
alvices que se misturam
com teu corpo de mulher.

Bordados e anagramas,
pequenos quadros e bibelôs,
móveis de madeira negra,
paredes de tom terroso,
piso persa e poeiras centenárias
dos tempos
nos interstícios
das tábuas corridas.

Repousas nua,
sobre o colchão dos tempos.

Repousas sobre os panos
tua beleza antiga,
tua textura epidérmica.

Ressonas sonho
de gozo adormecido.

Contrastam...

Teus pentelhos escuros,
ralos e obscenos,
e os cabelos finos
ao ritmo da brisa,
mansa,
que adentra pela fresta
da veneziana
entreaberta.

Tuas pernas
em relaxamento cósmico,
uma dobrada em ângulo
agudo para o teto alto.

Teus olhos,
ora entreabertos,
fitando terrosos, enigmáticos
em suas transparências.

Como se assistissem,
de longe, a mística cena,
do amante recostado,
numa bergère,
olhos ao vento,
a refolhar gravuras antigas
numa edição ocre, perdida,
achada nas estantes do acaso.


Tua nudez
espalhada na cambraia do tempo.

Perna em ângulo,
pendular em seu ir e vir.

Olhar perdido ao acaso
de encontrar o amante
ora entretido, distante,
num estelar comprimento,
que de repente pode ser nada.

Tua pele
tua perna que balança.

Tua boceta molhada,
ainda, do último gozo.

O relaxamento despudorado
da cumplicidade.
O olhar de pálpebras ao meio
a percorrer o quarto.

Cheiro acre de sexo,
da mistura de todos humores:
porra, gozo, água, suor, saliva,
lágrimas e sangue.

Miscigenam-se homem-mulher
na atmosfera amarela
do fim de tarde.

Brisa marinha
traz o sol do crepúsculo
na janela litorânea.

Olhos e sabores
recheiam as sensações
vívidas da tarde.

Os últimos raios ocidentais
refletidos nas águas da enseada.

A maresia dos cheiros
afasta as cortinas
do último ocaso meridional.

O amante percebe
no sabor do amontillado,
sorvido do cristal,
a necessidade cósmica
da amante receptiva.

A tua pele,
despida na noite.
O silêncio tomado
mas pleno de sentido.

A taça repousada,
o vinho dos desejos,
O abat-jour imprimindo
novas sombras
nas paredes da alcova.

Tua pele
em imperceptível fremir,
pulsa sobre os panos brancos.

A língua que escolhe um fio
e segue o caminho da noite
no hotel do tempo.




sábado, 8 de março de 2008

somos todos espíritos



Eu sou um ser humano, não vivo no ciberespaço, não sou um cyborg (lembram dele?), vivo no tempo e no espaço e nesse tempo e espaço tento caminhar, melhor dizendo acompanhar, a construção que está sendo feita.

Foi o eco repetido em uma sala de aula fora do espaço e do tempo.

Vejam bem...

A preocupação das pessoas... com a "humanização do ser".

A preocupação de fazer sentido dentro se um emaranhado de textos e construções simbólicas. Textos que nos remetem a uma trama desconstruída de idéias que ainda não fazem sentido. Nem farão. Porque o sentido deixou de ser o que foi para ser o próprio senso - ou essência - do ser. Sentido foi.

Textos que falam em nomes de filósofos ou poetas mortos, quando pressente-se que essa necessidade de "humanização" reclamada - quase exigida ou implorada - esse temor exacerbado à "ciborguização" exacerbada nada mais é que um apego à matéria deteriorada e a um modo de vida nostálgico.

Já foi a hora da transcendência do ser. Não somos homens: somos espíritos. Pois enquanto homens somos efêmeros, enquanto espíritos somos eternos. Dizer isso apenas para dar um tênue elo com claves apreendidas no passado. Qual a real importância dessas claves?

E aí eu pergunto: qual o espaço da onipresença? Qual o tempo da eternidade? Qual a ciência da consciência? De repente precisamos de âncoras "claves" que nos prendam a fixações teóricas do passado?

De repente - para nos sentirmos e sermos - precisamos recorrer à comunidade do bairro? Ao botequim da esquina? O jornal inexistente cujas páginas desmancham-se em nossas mãos, como um tecido de um antigo sudário.

Não... não vou citar fontes, nem nomes, nem autores perdidos pela morte do tempo.

Mas percebam que não existem bairros, não existem casas não existem quartos... e o corpo da mulher amada vai além da terceira, da quarta, da quinta... da enésima dimensão. E que faz tempo que fazer amor deixou de ser uma mera fricção de genitálias. Que isso se tornou tão vulgar visto do lugar onde nos amamos. Um lugar em que se fundem as consciências e onde o gênero deixa de ser o nexo imprescindível. De repente a mulher amada é um mito "uma mera clave de referência" pois o amor nos transformou num ser que somos e eternizamos... num outro ser. Faz-se, novamente a vida. Traz-se "não importa de que éter" uma consciência que se materializa com uma autonomia de ser. O homem "esse ser efêmero" ainda festeja a vida e se penaliza com a morte. Como se esse efemerecência não fosse cotidiana.

Perceba... estamos transcendendo o humano... e o verbo SER torna-se intransitivo. E isso é aqui e agora.



viver é uma construção!



Dizem que a aprendizagem é uma construção. É verdade! Mas isso não é só questão da Educação. É questão da Economia, da Direito, da Comunicação, da Medicina, da Administração, das Artes, da Engenharia... de todas as atividades produtivas da Sociedade como um todo. Ou seja: a Sociedade é uma construção.

Uma sociedade que se constrói com a argamassa de mãos, corações e mentes que se interligam e se interagem dando forma a uma cultura e um estado da arte: o ser social de caráter interdisciplinar.

Essa interdisciplinaridade exige a nossa onipresença, muito embora não sejamos exatamente nós: mas a nossa presença junto, participando como parte de um organismo integrado. O desligamento é fatal.

Todos devem estar pensando em como resolver suas tarefas cotidianas, não é? Quanta coisa que se avoluma sobre nós. E como pesa o tempo de nossa eternidade! Essa consciência dos milênios sobre a nossa atual duração efêmera.

Esse é o grande problema de todas as formas de construção e de organização que existem: essa engenharia das relações sociais e do trabalho coletivo. Imprescindível.

É essa a complexidade, do mundo pós-moderno, ou pós-pós-moderno. O mundo reorganizou-se de uma forma não-linear - talvez, caótica, à nossa compreensão - e nos exige que o compreendamos, pois exige a nossa participação em troca da sobrevivência, da segurança... (segue-se Maslow e sua hierarquia de necessidades).

Assim, nossa vida, nossa organização familiar e celular, exige mudanças. Mudanças na forma de viver, na forma de pensar, na forma de trabalhar. Nossa concepção do mundo tem que mudar porque, simplesmente, o mundo mudou. É um saudosismo bucólico e inócuo pensar que podemos manter a mesma "humanização" que tínhamos num mundo que já não existe mais.

Quem acompanha o mundo tecno e está conectado 24 horas-dia nunca viu tanta preocupação com a construção de ambientes colaborativos, não só para a aprendizagem, mas para o trabalho: para todas as atividades produtivas da vida. São iniciativas, buscas de onipresença, de trabalho coletivo, de soluções para resolver as exigências de complexidade e interdisciplinaridade, dessa nova sociedade que nos obriga a ser produtivos. Pois, a mesma sociedade será perversa ao marginalizar aqueles que não souberem estar nela.

Aí... essas ferramentas de trabalho colaborativo vêm em nosso socorro. Ferramentas em desenvolvimento permanente, pois dia após dia... novas complexidades.

Daí não adianta discutirmos se somos "ciborgues" ou "humanos". Precisamos perceber que essas ferramentas vêm em socorro - quase paramédico - da nossa grande dificuldade de auto-organização, nessa universalidade que bate à nossa porta.

E nos diz que, antes de mais nada, a vida é um processo. E todo processo consciente visa do dia-a-dia um todo e sempre amanhã evolutivo. Ser parte desse processo significa uma luta de emancipação. Pois fazer parte da construção do futuro nos faz donos de nossa própria existência: o ser intransitivo.

O ser que se reproduz em si mesmo e gera outros aprendizes e aprendizagens para perenizar uma humanidade construtiva. E assim a humanidade se eterniza na intensidade e na continuidade do porvir.

É... a vida é uma construção. Um permanente construir do porvir. É o que nos faz maior do que nós mesmos. O que nos dá a plenitude da percepção de que somos eternos. Há, pois, uma boa razão para fazermos sempre melhor o nosso cotidiano.




a casa tomada


 



Já não atendes o telefone de casa.
Já não consegues dar um passo se quer.
Já não podes nem ficar calada
Tens que explicar e dizer o que é.

Tu dividiste a tua morada,
Tu acolheste pensando, o melhor
E agora te percebes tomada,
separada de ti, ou pior.

Hoje tudo, quase, te incrimina,
Já não podes nem mesmo sonhar
Que tem sempre alguém na espreita
E tu vives em fuga no teu próprio lar. 

 



quinta-feira, 6 de março de 2008

de onde surge você




De onde surge você,
pálida,
nesta manhã
por entre os meus lençóis?

Desperto com teu hálito,
fresco,
a perfumar de dia,
um leito de flores do campo.

De onde surge esta figura esguia
a marulhar
a gaze dos lençóis?

Perde-se conta
das manhãs
descortinadas
na agonia da insônia.

Perde-se a conta
das dores e lamentos
ouvidas nas madrugadas
sem acasos.

Onde descobriste
o endereço do meu horizonte
para brilhar com luz vadia
e penetrar entre as cortinas
de meu catre?

Como fizeste
para desvendar a olhos vidrados
num horizonte sempre imutável?

E que trazia, sempre, a dor
em forma de luz matinal.
Como gotas de ferro fundido
a infiltrar nas têmporas...

Como fizeste?



o fato de esquecer o corpo





Quase nem sinto o sol queimar a minha pele. Pressinto-o de longe, embora saiba, também de longe, que esta noite virá a ardência irreparável da permanência aqui já não sei há quantas horas. O fato é que penetrei por uma vereda de raciocínio que me absorve por completo. Estranha esta sensação de esquecer o corpo. Muito estranha.

Isso me acontece muitas vezes. Não sei quantas ao dia. Percebo que isso tem a ver com a total, ou quase total, ou talvez maior que o normal, concentração que dedico a um certo tipo de pensamento. É isso... é a concentração em alguns pensamentos, algum raciocínio, que me faz esquecer do corpo.

Fico neste lugar até com um pouco de auto-flagelação, talvez por excesso de pretensão: um sacrifício pela ciência, um homem capaz de modificar o mundo. E se deixarem modifico mesmo. Eitcha, sensação de onipotência esta! Pobre pretensioso! Não tão ingênuo quanto aparenta... muito mais perigoso. Muita coisa irá mudar. Com o tempo tudo se desenvolverá, desenvolverão a humanidade, sua história, chegará num determinado ponto que não dará mais para segurar.

O socialismo virá, não resta dúvida! Tudo mudará e a humanidade continuará se desenvolvendo. Novas formas virão. Omessa! (Lembro-me do Arrelia!)

Muito Bem! Satisfeito com as divagações filosóficas, a ardência sobre os ombros começa a se fazer sentir. Daí começo a perceber o lugar em que estou. Realmente, o sol está bastante quente. Uma instantânea vitalidade... quis levantar e procurar uma água. Que lugar é esse? Ah... se me lembrasse do lugar onde haveria de ter saído de manhã! Estou querendo saber o lugar onde estou, mas isto não preocupa muito... bastará achar um pouco de água e tudo estará cem por cento.

À minha frente há uma coisa que eu ainda não havia percebido... Aproximei-me para ver melhor a coisa... Uma pedra! Uma pedra enorme! Maior que um caminhão! Ah... escreveram nela Casas Pernambucanas. Onde será que estou? Eu já vi estas palavras, estas coisas, em algum lugar antes!

Há, à direita da pedra, uma árvore até bem grande. Um tronco possante, folhas abundantes. À direita da árvore... uma estrada. Ah... como eu poderia ter deixado de vê-la! Tudo para mim, à volta, parece novo. Este micro-cenário está crescendo de tamanho. Está me dando a sensação estranha de pequenez. Antes tudo cabia em mim. Redescubro o mundo depois de passar um bom período de tempo concentrado em determinado raciocínio que as circunstâncias, agora, tornaram secundário. Estou voltando a mim de uma maneira extremamente mais lenta... pois desconheço o lugar... mas já vou descobrir tudo! Não me lembro do lugar em que me encontro. Não consigo lembrar de nada que fiz, realmente, neste dia inteiro, a não ser de um raciocínio... Bolas! Que já esqueci!

Devo ter saído, de manhã, de algum lugar "que já vou descobrir qual foi" e me esqueci do corpo! Devo ter ficado horas e horas andando, seguindo alguma trilha que me apareceu pela frente, até este lugar que tem esta pedra, esta árvore e esta estrada que é indício de civilização; assim como a inscrição Casas Pernambucanas na pedra. Ótimas dicas para sair do delírio e retornar à realidade objetiva!

Lógico que sei o que é Casas Pernambucanas. Lógico que sei o que é uma estrada e, mais que isso, que ela deverá levar a algum lugar, na maioria dos casos.

Resolvi, ou melhor: deduzi, que a melhor solução para o problema deste momento seria tomar uma das direções desta estrada. Para um de seus destinos. Esperando que a sorte me ajudasse a escolher o rumo certo e que me deixe o mais próximo possível de algo que me parecesse familiar, pois minhas costas estão ardendo, agora já com certo rigor.

Talvez eu conseguisse encontrar alguma maneira de proteger os ombros e as costas. Onde será que ficou minha camisa? Não costumo sair de casa sem camisa!

A pedra tomava conta, praticamente, de todo o horizonte visual à minha frente. Ao lado da pedra... uma árvore. Ao lado da árvore... uma estrada! E... às minha costas... Uau! Um precipício! Só agora notei... uma ribanceira ... Pudera, absorto em meus pensamentos e meandros lógicos ainda não havia olhado para trás.

Bem... pelo menos descobri mais alguma coisa mas, sinceramente, ainda não posso afirmar onde estou. A paisagem... não sei, nunca vi!

A estrada... a estrada é a solução! Será que isso não vai chegar a um termo? Tomarei o caminho da esquerda, porque o da direita me parece menos simpático. Não por questões ideológicas, mas por questões topográficas... o da direita era um aclive!

Mas ainda não havia dado um passo sequer. Desde que comecei a tomar pé daquilo que se passa eu apenas virei levemente o pescoço e as costas para olhar para trás. Continuo pregado ao solo, hirto, sem camisa, sob um sol muito quente, perto de uma pedra, uma árvore e à beira de um precipício...

Primeira providência: afastar-me da ribanceira. Ação. Muito bem... o corpo obedeceu, nem tudo está perdido.

Bem... acostumado com o movimento, com a saída da inércia, dei mais alguns passos. Com a mudança do ponto de vista pude reparar que havia uma pedra menor, antes encoberta pela maior e sobre ela... lá estava a minha camisa. E sobre ela o meu relógio. Olhei em direção à estrada e vi uma casa. Sim... a casa em que eu estava hospedado com uns amigos. Olhei para o relógio: 8:09 AM! Não havia nem dez minutos que tinha saído da casa! E tudo aquilo aconteceu... aquilo o quê?

Verifico o relógio agora, lembrando-me cristalinamente de tudo. Tudo, enfim, que um ser dito normal costuma lembrar imediatamente quando questionado.





pequenos abandonos




- Faz de conta que não existe nada, que tudo aquilo que a gente vê lá fora está longe demais. Não é tanta mentira assim!

Levantou. Foi como se fosse trocar um disco, mas desviou da vitrola e se encaminhou para a estante de livros. Também não procurou nenhum livro. Apanhou, isso sim, um cigarro. Acendeu.

- Não... não sou tão alienado assim - continuou - Não me olhe com esse olhar reprovador!

- Não estava pensando nada - disse ela - não estou reprovando nada! Acho que você até tem razão quando diz isso!

Ele levantou. Tomou o cigarro das mãos dela e deu uma tragada. Soltou a fumaça para o outro lado. Trouxe o cinzeiro e sentou-se na cama.

Ela acendeu um outro cigarro. Sentou-se também. Pausa.

- Você vê esse olhar reprovador em tudo - disse ela com o cigarro pelo meio.

- E o que você está fazendo agora? Por acaso não está me chamando de paranóico? Ou reprovando minha atitude?

- Sua conduta está intolerável. Você está nervoso demais para o meu gosto. Vou abandoná-lo.

- Claro que vai, eu também não te suporto mais - disse ele e saiu.

Fechou a porta delicadamente. Não fez maiores dramas, não havia razão. Ela é uma ótima mulher, mas o que se pode fazer - pensou. Desceu no elevador. É impossível suportar uma relação em que a paixão se escasseia e dá lugar àquela intimidade perturbadora. Aquela intimidade quase que inquisitiva, Calada. Alguma coisa está sobrando. Chegou à rua.

Havia algum tempo que os dois estavam se sobrando.

Caminhou a Figueiredo Magalhães até a praia. Atravessou com cuidado as duas pistas da Avenida Atlântica. Tomou o caminho do Posto 6. Não via ninguém. Parou para ver a pelada na praia, em frente à Constante Ramos. Sentou-se na calçada com os pés na areia. Reparou no número 6 com a camisa do Botafogo, quando ele matou a bola no peito, deixou-a escorrer pelo corpo, enquanto olhava a colocação da equipe, deu uma esticada em diagonal para o ponta-direita, que emendou de primeira, mas isolou a bola. Gostou do número 6, passou a torcer pelo time dele.

Não ficou ali por muito tempo. Caminhou pela Constante Ramos até chegar na Avenida. Muita gente. Compras de Natal.

- O Natal chegou mais cedo. Sempre mais cedo. Cada vez mais cedo.

Talvez devesse procurar alguém. Mas para que chatear alguém com histórias de romance na tarde. Optou por não importunar. Talvez esteja passando um bom filme no Copacabana! Ou no Art-Palácio, ou no Metro - não o Metro demoliram - ou uma boa reprise no Jóia.

No Copacabana estava passando uma porno-chanchada. No Art, um filme de ilha. Detesto filme de ilha! - pensou - é horrível ver pessoas numa ilha quando se está é em Copacabana mesmo. Pois é, o ruído da rua atesta. No Jóia Gritos e Sussurros - Não! Pela terceira vez, e hoje, não!

Desistiu do cinema. Subiu a Santa Clara, entrou na Modern Sound. Não demorou: é duro ver tanto disco importado quando não se tem grana nem prá comprar nacional! - refletiu. . Continuou subindo a Santa Clara, atravessou a Toneleros, entrou na galeria que dá no Bairro do Peixoto. Sentou na praça, num banco.

Queixo apoiado na mão, cotovelo no joelho, pé fincado no chão. Levantou. Atravessou a praça, continuou pela rua em frente, rapidamente. Virou à direita. Caminhou apressadamente.

Entrou no edifício. Subiu no elevador. Abriu a porta com a chave. Encontrou-a no quarto fumando - quem sabe - ainda o mesmo cigarro.



não quero escrever poesia ácida





Não quero escrever poesia ácida
que fala de mutilações da alma
e do corpo e da mente.
Não me agrada agora escrever.

Sinto-me até arrependido
de ter dedicado tanto tempo a isso.
Não fico preocupado:
torna-se difícil a minha busca.
Mas só não é possível,
por exemplo,
encontrar Quintana,
de uma pena tão suave, tão sutil.
Faz-me levitar e percorrer caminhos.
(Não o caminho fácil de Porto Alegre,
da minha também infância),
mas o caminho do éter,
penetrar em nuvens,
em tocar o vento, em viver os cães,
as rãs,
os grilos,
a noite
e claro...
os passarinhos.
Toda a magia...

Pensando em Quintana...
em Drummond...
Penso que na velhice,
para não deixar a mente fraquejar,
é necessário escrever
toda a maturidade do verso.
Penso em Cora Coralina,
e, também...

Mas, de repente surge Pessoa
e daí me lembro que morreu jovem.
Lembro-me de Poe
e sei que, também,
tempranamente nos deixou.
Começo a lembrar de tantos outros.
A relação torna-se falha.
Mas nesses casos o espírito era velho,
e continua sendo.

Mas Quintana está perto do éter.
Ele já quase mistura-se.
Ele é meio gente,
meio éter.
E a gente percorre caminhos que...

Não gosto dessa poesia ácida...
Não gosto de toda hora
ouvir falar de entranhas...
em garras,
em punhais,
coisas agudas...
Não quero escrever mais nada.



conta-me o que houve





Conta-me o que houve...
Explica-me o cenário...
Onde você anda?
Como é que foi?

Sim, deve estar tudo escrito.
Devias ter um livro preto de anotações
com este meu.

É verdade, o infinito e violeta?

Como um mergulho direto ao espírito
que te tragou e levou para longe
e nos deixou sem palavras.

Não gosto demais do concreto.
Não saberia fazê-lo
na tua acidez sulfúrea,
teus dentes, teus óculos escuros.
E os dedos... o calo da escrita.
A cãibra de horas insones,
redigindo textos diretos,
sem retoques, sem gavetas,
sem embalagem, diretos,
secos e sulfúreos.

Deixa-me escrever um epitáfio,
não morto, nem eterno.
Um epitáfio mudo,
uma lembrança apenas,
apenas aquilo de lembrar.
Apenas aquilo de lembrar
e que sempre me lembre,
para a minha vida e morte,
fora das espécies comuns,
e ao mesmo tempo com tudo,
como o ar que expande,
como a água que adapta.
E toda a umidade de ambos...
E toda a melancolia de ambos...
Ana Cristina César.







é uma luz diferente





É uma luz diferente.
Como penetrar estradas do interior,
caminhando a pé,
levando apenas consigo o silêncio.

O vento frio, o sol morno.
Tardes de junho.
E folhas secas que esqueceram o outono.
Deixa-me pisar suave,
como se o passo criasse
e fosse todo um universo,
para quem se estivesse integrando
e integrado com a terra úmida.

Há ainda ensolaradas
e claras tardes invernais!
E ainda existem suspiros
nas janelas toscas
e, no fundo,
sonhos românticos.
Como eram os avós
nos tempos de meus avós
e toda aquela cultura de vidas vividas.
Aquilo que lembra
e dá uma melancolia cheia de água.
Uma melancolia integrada e impregnada,
do último suspiro exalado de um sobrado.

Há pianos e dedos
a semear ventos, ares,
levando à atmosfera
retoques e perfumes,
e história, ou seja, memórias.
Será que eu me recordo?
Não sei se me lembro!
Não sei se me lembro!
Todos esses caminhos
rumo ao meu coração
e essa estrada e essa lembrança.

E os dentes, e a pele...

E sem necessidade,
sem pressa,
sem qualquer porquê,
um porquê substantivo
e tão desnecessário.
O espírito está no espírito
e as idéias surgem
como memórias
e tanta coisa esquecida.
Cada passo, na estrada,
retorna e me afasta,
e me deixa claro, limpo,
ao mesmo tempo me aquece,
e faz andar mais,
andar mais,
andar mais...










é um último suspiro de patriotismo

É um último suspiro de patriotismo.
Pensar em Brasil
numa última olhada para trás
antes de adentrar,
como ser do Universo,
numa nova vida ideológica.

Do Brasil resta um mercado.
Uma constelação de inconsciências
tocando um dia-a-dia de ódio
em meio à violência urbana.

Não resta nada!
Resta um mundo ensandecido,
explorado pelas empresas mundiais,
com padrões globais,
e dominado pelo rancor.

Onde começou? Onde termina o drama?
Não me cabe, não me apetece!
Até mesmo finjo que não sei,
não me anima dizer.

Não me cabe avaliar a fúria
de todo instrumental ligado à persuasão,
toda a tirania da comunicação,
todo artefato bélico intangível,
que dominou este povo.
Que levou a multiplicar,
multiplicar ou exponenciar, pobreza.
Não gosto de entender do mal,
nem mesmo para evitá-lo.

Hoje até sonho com natureza,
com praias calmas e marulhos.
Sonho com estrelas, com galáxias, imensidões,
com pequenices, com fugazes expressões de amor,
jogadas a esmo no cotidiano,
e desapercebidas e em seguida pisadas,
chutadas para o meio-fio,
onde, indefectivelmente, encontram um bueiro,
por onde se esgotam e se perdem.

Hoje penso em importâncias
e desimportâncias.
Me interessam as fugas,
me interessam as coisa sutis.
Não gosto da violência.
Não me sinto obrigado a amar
esta realidade forjada
pelos tiranos, pelos corruptos,
e seus capatazes.

Me interessa a paz bucólica,
ainda desconhecida,
do meu cérebro racional
e cheio de defesas.
Não sei direito
e nem mesmo acho
que devo sabê-lo tão bem
como se decorasse umas fórmulas
e aplicasse na veia toda a metodologia.

De repente toda a sabedoria pode ser,
simplesmente,
perceber a própria ignorância,
e buscar caminhos,
palavras e coisas e pessoas,
que nos entreguem ao destino.
A um destino mais brando e sensível.

Mas não sei. Sinto e pressinto desastres.
Não vejo saída feliz para esses homens.
Trato de acalmar minha dor
e viver um pouco melhor.
Essa tristeza de pensar tudo isso...
deveria ser, apenas,
uma longínqua lembrança.

Prometo a mim mesmo pensar menos.
Viver melhor,
dormir melhor,
amar melhor.
Aprender pequenas
coisas como grandes.
E grandes
como se pequenas fossem.
Aprender com o dia,
com as cores,
com o calor,
com crianças,
mas com crianças puras,
ainda não dominadas pelo satânico
e pela cultura
que as transforma em andróides.

Te juro,
eu até gostaria de escrever
textos progressistas,
ecologistas, marxistas,
etceteristas, e tudo o mais.
Mas não me animo.
Prefiro entrar no Eu próprio
e no dos outros.
Prefiro buscar
o espírito das coisas e dos seres.
Estes são imortais
e só morrem com a civilização.
E antes que algum louco puxe o gatilho.
Antes que tudo acabe...
gostaria de respirar um pouco.


um dia manhã às 10 horas

Um dia, manhã, às 10 horas.
Calçada de uma cidade.
Jardins de lírios afloram.
Providos de sexto sentido.

Mecânica paisagem distorcida.
Sentido de brinquedo esquecido.
Plastificação de ruídos.
Mágica expressão de alaridos.

Identifiquei na encenação da vida
uma cabeça pensante,
mas em meio ao turbilhão
perdi você de vista.

Não falem de paisagens.
Escondam-se nos quartos.
Até segundo aviso,
não atendam ninguém.


a cidade desperta



A cidade desperta.
O rumor que vibra os alvéolos.
A cidade é moderna.
Os carros transitam na cela.

A cidade desperta.
O martelo vibra a bigorna.
Mantendo ritmo exaustivo.
Um cálice de leite se entorna.

A cidade desperta.
O mágico veste seus dias.
A cidade é moderna.
A avenida irradia.

A cidade desperta.
Forte rumor de histeria.
A cidade é moderna.
A cidade é vazia.






terça-feira, 4 de março de 2008

sorriso amarelo

Deitar na relva
ou virar fumaça
As opções de finitude
face ao infinito

Deixar-se ir
tentando ser
a transcedência
em si

A prisão do cotidiano
limitações do ser
O corpo imperfeito
que se deteriora
e que às vezes guarda
em si
a esperança de renascer

Vida provisória
efêmera
Presença na casca
encarnada e viral.

Prolifera-se
em um mundo
cada vez menos importante
Mas que é uma prisão
Não importa o tamanho da cela

Tanto estou preso em mim
no meu tempo
nos meus fatos
nos meus fardos
nas minha razões
hábitos que habito

A ânsia de voar
da não-permanência
Da face que some
se dissolve na vida
se desfigura
a caminho do nada

Há tanto o nada
quanto há o tudo.

E a esperança
acorda a cada manhã
Na escova dos dentes
o sorriso amarelo
Cada vez mais amarelo
Cada vez mais sempre

Para Li Stoducto



casado com o ópio

 

Às vezes eu fico pensando
se a consciência é importante
e se vale a dor cotidiana
de seguir nesse caminho

Às vezes eu fico pensando
se não é melhor, mais digno,
estabelecer uma relação
com o ópio e nele ficar
permanentemente
até o esvair lento
rumo ao colapso
dos órgãos

Esse fardo humano
da culpa que carregamos
como se a realidade fosse
uma condenação

Penso e logo a minha razão
o meu logos
vai construindo a minha
existência
aos pouquinhos
como uma via-crucis
ingerida diariamente
diluída em pequenas doses
de paixão

Então, me perco nesse
emaranhado emocional
de vez em quando
nas reflexões de vida
que acontecem
em datas marcadas
no fim de ano
no meu aniversário
no momento de angústia
que antecede
algum acontecimento

E, penso, se estivesse eu
casado com o ópio
numa relação diária
talvez abolisse a consciência
e estivesse abrindo uma janela
para ir embora
definitivamente
e livrar-me da dor.

 


 

ah, sim, uma estética...

 

De repente,
como se houvesse culpa
embebida nas palavras,
a sintonia se perde.

Pela lascívia
de uma noite imaginada,
oculta depois do ocaso,
sem lua, desvanesce
a sensação de encontro
premeditada.

E num instante misturas
a percepção do dia,
a confusão da noite,
numa lírica obscena
para meus sentidos
para a estética deles.

Um perfume sem lugar.
Uma canção sem tom.
Uma linha sem estilo.
Uma regra sem jogo.

 


 

alter-eros

 

O amor que acaba é uma ilusão
e uma ilusão deve morrer"
(Paulinho da Viola)



I

Peço licença, oh Musa,
para falar de anos
que não passaram
de fontes que não verteram
de vísceras que não se esparramaram
de fibras que não se dilaceraram
de músculos que não se retesaram
de frase que jamais foram ditas,
ou escritas, ou citadas...

Peço licença, oh Musa,
para, hoje, ser um pouco menos teu.
Para abrir passagem
em bosques
sem dragões, nem princesas...
nem névoas
em suas clareiras
em suas fontes.
Nenhuma fada nua
envolta em gases inebriantes.
Sem carícias pressentidas ao acaso.
Sem sensações premeditadas,
nem intenções veladamente obscenas
guardadas nos alforjes da jornada.

II

Acordar,
não do sonho preservado,
não das névoas que admitem a carne,
não do toque dos pelos notívagos
a conduzir a sina por caminhos pélvicos.
Aprofundar-se, sim, nas cicatrizes
de uma manhã descoberta.
Amanhecer nas malhas
e encontrar, ao lado,
insofismável,
a pretensão estendida.


As brumas noturnas
circunavegadas
em torno do mesmo tema
da manhã anunciada.
A magia reconhecida
ao toque da consistência.
Despertar trazendo o perfume
de uma viagem noturna
e encontrar vestígios
de um gozo completo
nos interstícios da carne.

III

Não,
como é frustrante
o descortinar dos raios
sobre uma alcova
imersa em devaneios,
e, ao lado,
junto ao desejo partido,
inconfessado sentido,
não observar
a química da revelação
materializada.

IV

Sensações ambíguas
na polivalência da rede
que balança no alpendre.
O ir e vir.
A ansiedade do porvir.
A efetiva sombra
projetada
no despretensioso sol
de uma tarde morta.
O apanhado de carne,
sobras do almoço.
As moscas que beliscam e ,
superficialmente incômodas,
remexem nas frestas
abertas de uma ferida.
As frieiras do falso vento,
o avançado da idade
no refúgio do inútil.


V

Lento progredir
da maratona insana.
Vida vivida a esmo
percolada de estio.
Luminosidades refletidas
nas saliências dos cantos.
As equimoses do tempo
nos resvalos
impercebidos nas quinas.
Não,
o amargor sentido
de dentro da saliva.
A pele misturada
na ardência dos ácidos.
A perpétua e obstinada
prepotência do inevitável ocaso.
A ridicularização dos ícones
a representar falácias.
Regras inadmitidas,
frascos de inconsistência
a revelar nos pelos
a sensibilidade dos insetos.

VI

Aquela lembrança noturna
percebida dentro do sono.
A definida figura, clara,
a conduzir o espectro
de alguma inacessibilidade.
O lento solavanco
dos dormentes do tempo,
onde cada momento,
esvaído do nada,
purga nas chagas
da tarde dos incestos.


Aquela jovem visitada
e que de nada se apercebe.
O erotismo de ser
simplesmente um suspiro.
A vetusta fonte
de entranhas águas.
Profundez de vales.
Reprodução de fatos.
Melódica inacabada.
Contínuo interrompido.
Sinfonia deletada.
Profanação e carnes imoladas.

 


 

imagem

 

Na cadência dos passos cotidianos,
compassos que representam anos,
um ser real desprende-se de mim
e me assiste ao largo. Sempre assim.

Na massa humana que se embaralha,
sou eu que vou descobrindo atalho
E no momento em que a tensão se espalha
Sinto o olhar dele fixado em mim.

Ao sair da multidão, adentro
por meus umbrais em meu aposento,
e onde o dentro é cada vez mais dentro
ele me aguarda já tomado assento.

E no mais íntimo dos espelhos caseiros
Onde me tranco para meu asseio
Olhos se fitam como companheiros
e atrás deles está meu próprio rosto.

 


 

traz-me presença

 

Vem...
Traz-me a presença,
Mesmo que plasmada de angústia.

Traga-me essa luz
mesmo que seja obscura.
Que me ilumine.

Mesmo que seja
para um desjejum de dores,
me chama!

 


 

convicções

 

Eu não tenho "convicção" de absolutamente nada. Ser ou estar "convicto" de algo me parece um estado de tolice provisória.

Quando eu falo em "convicções", refiro-me a "certezas". A gente quando se diz convicto de alguma coisa, está afirmando que está absolutamente certo de que aquilo é certo.

Diz o Aurélio, sobre "convicção":

1. Efeito de convencer.
2. Certeza adquirida por demonstração.
3. Persuasão íntima.

Se tomarmos o sentido de "Efeito de convencer" para mim não seria "convicção" a palavra mais adequada e sim "catequese". Ou, melhor, um ato essencialmente político de fazer com que uma idéia seja incorporada por terceiros. Pode ser visto até como uma ação de promoção, de propaganda, de venda. Mas não quer dizer que estamos absolutamente certos do que estamos querendo fazer com que outros incorporem. Interessa-nos, sob esse enfoque, a persuasão do outro e não a nossa. É muito cômodo que terceiros tenham "convicções" neste sentido. Quando pessoas se submetem às nossas "convicções" estamos exercendo poder de dominância sobre pessoas. E isso para mim é muito ruim... Muito ruim mesmo.

Se tomarmos no conceito de "Certeza adquirida por demonstração" temos a própria expressão do positivismo. Ou seja, da ciência experimental. A crise que vem passando a ciência, desde a década de 80, mostra que o positivismo é algo que deve ser visto com muitas ressalvas. Que as tais "condições normais de temperatura e pressão" são apenas situações hipotéticas. A mesma coisa na Economia: o tal do "livre mercado", a tal da "concorrência perfeita", são apenas situações hipotéticas. Hoje sabemos que tudo está interligado e que não tem lá muito sentido dizer que isso incorre naquilo. Não estou dizendo que a ciência experimental seja inútil. Estou dizendo que ela não se sustenta por si mesma.

Se tomarmos no sentido de "Persuasão íntima", ou seja, convencermos a nós mesmos de alguma coisa. Para que isso serve? Para congelarmos um pensamento, dando-o como certo, e nos robotizarmos no futuro próximo? Ou seja, estamos querendo transformar nossa cabeça num computador? Parametrizamos nosso cérebro para fazermos simulações e tomarmos decisões? Para que serve essa tal de "persuasão íntima"?

Ou seja, parece-me que essa palavra "convicção" é quase um sinônimo de ingenuidade. Ou então de mau-caratismo: dizemo-nos "convictos" para iludir pessoas a respeito de uma "verdade" que nos interessa política, filosófica ou comercialmente. Quando afirmamos "Estou convicto!" - e batemos na mesa para enfatizar cenicamente tal "convicção" - estamos na verdade ou tentando calar a boca de quem se opõe (quando temos poder para tal); ou então dizendo: "Basta! Eu não quero mais ouvir você." Isso é um tanto feio e deselegante, não é?

Eu aprendi que não existem certezas nem no futuro, nem no presente, nem mesmo no passado. Quando se revisita o passado a gente nunca o vê da mesma maneira. A fenomenologia, isso que eu estudo, é justamente um método de desvelar o ser que somos através de sua historicidade. Usa a tal da hermenêutica, que é um processo de pesquisa que a fenomenologia usa para desvendar signos e sinais ocultos e permitir uma leitura em busca desse desvelamento. Creio que possamos usar outros processos.

No presente nós vivemos o cotidiano. Dificilmente estamos preocupados em ter convicções: no cotidiano - que é o momento que a gente vive - o dasein, o eu-aqui como fala Heidegger - o que temos é posicionamentos políticos. Tomamos uma decisão, defendemos um ponto de vista, fazemos alguma coisa, não porque temos convicção, mas porque consideramos uma hipótese e a interpretamos com as informações que temos até o aqui-e-agora.
 

 


 

todo o silêncio

 

 

Naquele dia, em um sonho dentro de um sonho, você apareceu de surpresa. Veio a minha casa e abriu meus portões silenciosos. Esperou na sala, sentada no sofá, aguardando o tempo. Não olhou minhas coisas, não abriu nenhum de meus livros, não fumou sequer um cigarro.

Como o tempo à espera do tempo, esperou com calma que eu adentrasse no aposento. E sobrmaneira não me surpreendesse ao perceber que ali você estava. Estava dentro de meu sonho e com uma calma quase tímida me fitava nos olhos.

Naquele momento o tempo parou.

E precisei de um longo espaço de contemplação dentro de teus olhos. Havia em você uma placidez de um lago sem vento. Havia em você a percepção de que todas as palavras seriam inúteis. E que naquele momento o foco do universo era aquele homem e aquela mulher sentados um frente ao outro, deixando-se envolver por uma atmosfera comum.

Poderia vir o desejo. Sim, poderia. Mas como que houvesse toda a eternidade para concluir o ato, o desejo deu lugar a outro desejo. Como se houvesse um outro acasalamento em uma dimensão de sonho.

Sim. Eu estava morto e você me visitava. Qualquer coisa que eu fizesse ficaria no domínio do abstrato. A não ser percorrer a mão nas penugens de teu corpo e eriçar a pele e abrir teus poros. Para que eu-éter penetrasse e você me compreendesse.

E foi todo o significado dessa dimensão de espera. E a certeza triste da impossibilidade me fez saber da minha impotência morta. E minhas lágrimas etéreas se depositaram sobre a tua nudez. E você, mantendo sempre o silêncio, me acompanhou até a porta. E eu segui o caminho que todos irão seguir.

Você ficou na porta me olhando ir. E adentrou a casa e habitou-a, simplesmente, sem nada mais dizer.

 


 

Dayse Miller [Peter Bogdanovich, Henry James]

 

 

Quando assisti ao filme Daisy Miller, de Peter Bogdanovich, baseado na novela Henry James que eu não conhecia, a princípio pensei que se tratava de um caso amoroso em que os personagens se envolveriam em cenas plenas de lascívia. Enganei-me e me surpreendi. Trata-se de um filme belíssimo, sobre personagens incomuns e que fogem do vulgar que conduz ao lugar comum de todos os casos amorosos. Cada minuto me surpreendeu pela delicadeza das carícias que jamais foram tocadas.

De Henry James eu só conhecia A Volta do Parafuso, embora tenha gostado bastante, quis a vida que eu não me interessasse em percorrer a obra do autor, o que costumeiramente eu faço quando gosto. Não conhecia, portanto, a história e a trama que se desencadeou no filme. Fui pego de surpresa numa tarde vadia em que nada esperava.

Ao longo da minha vida eu conheci várias mulheres em que a beleza e, sobretudo, a peculiaridade do espírito, atraíram de mim, mais que o desejo, um exercício de admiração. Não que o desejo fosse inexistente, mas que admiração fosse ainda maior que o próprio desejo. E, sobretudo, porque se trataram de almas tão fascinantes que seria quase impossível que tal perfeição de detalhe, não compusesse um todo harmônico de beleza.

Assim sendo, vi-me vestido na pele do protagonista masculino que se viu enredado entre o desejo de tê-la e o gesto de admiração que, como cavalheiro de uma época vitoriana, se via obrigado a respeitar. E respeitando o respeito: não transgrediu a regra na incerteza de que Daisy seria uma alma pura, ingênua, ou inconseqüente. Essa questão o personagem leva até o fim do filme, quando da mais tristes formas de expressão das tragédias, se revela a realidade teórica de um amor.

Diria a lógica mundana do mundo masculino que o romance é sempre ilusório. Sempre uma construção fictícia em que o autor supera a realidade em perfeição. Mas ao longo de toda a minha vida eu sempre mantive a coerência de não transgredir o limite do desejo, em prejuízo da admiração. Porque o desejo é vulgar. Acontece a todo momento, quando se transita nas ruas de uma metrópole de qualquer século. A admiração não é vulgar. É rara, peculiar e delicada. E há de ser preservada a todo custo, mesmo em prejuízo do prazer mundano. Porque um cavalheiro há de preservar os instintos para os momentos adequados, quando é de comum acordo, claro e insofismável, que se perca a razão e se, suceda uma mudança qualitativa no encontro.

Ao longo de minha vida eu tive muitos encontros de admiração. Alguns foram bem sucedidos em termos de encontro amoroso. Outras vezes eu perdi o tempo do encontro, algumas vezes por ser equilibrado demais; em outras, por perder totalmente o equilíbrio, não consegui conduzir a bom termo.

Mas todos foram experiências de vida imensuráveis em termos de beleza. Já no horizonte dos 60 anos eu consigo vislumbrar toda essa beleza, indiferenciando o caráter da resolução.

Foi assim que assisti ao breve filme de menos de hora e meia. E percebi em mim a ternura do gesto de admiração, vivida pelo protagonista, com a mesma profunda emoção dos amores que não deram certo, mas que são amores e jamais mereceriam que se perdessem em mundo abafados pelo lugar comum da lascívia humana.

E eu reconheço que, embora não consumado, ainda será amor e talvez assim permaneça eterno, sem que se tenha a oportunidade de provar que não é.

 


 

das perdas e do renascimento

 

 

Não existe nada mais determinante em astrologia do que um trânsito de Plutão. Talvez seja o único evento que não conseguimos, nem conseguiremos nos safar. Plutão representa o nosso contato com o que desconhecemos, o nosso inferno particular, a nossa falência, o nosso luto mais profundo, tudo aquilo que nos abala mais profundamente. E que nada podemos fazer. Plutão pode significar perda do amor que a gente mais quer, do amigo que mais amamos, pode significar a perda do filho. Nunca traz a nossa morte, mas nos mata um pouco, devagar, como um câncer que se propaga, devastando a nossa vida vagarosamente.

Essas perdas não significam, obrigatoriamente, a morte de alguém. Pode ser pior que a morte. Pode ser a dor de perder uma pessoa que a gente ama; perder para a vida. Perder uma amiga, ou um amigo, para a incompreensão, para o silêncio, para o "não quero mais saber". Sem que haja lógica, nem razão, a pessoa cessa de nos querer.

Plutão representa o ilógico, o inexplicável, o inevitável, o inexorável. Perder um amigo com ele em vida, significa a desilusão da pior espécie. É mais inexplicável que a perda de um amante, porque o desejo é uma chama que se consome e é natural que se desvaneça e se apague e daí nada mais natural que o adeus. Mas a perda de um amigo, com ele em vida, de uma amizade profunda, é uma dor terrível. Nada se pode fazer!

Nem sempre se pode creditar a Plutão uma determinada perda. Saturno é dado a contribuir para perdas mais factíveis. Essas perdas que são terríveis, mas que passam porque têm que passar. A perda do pai, ou da mãe, mesmo fora de hora, é uma perda lógica. A perda de um filho, em contrapartida, é ilógica. è natural que os pais morram antes dos seus filhos e não o contrário. A perda dos pais é coisa de Saturno, porque Saturno é lógico. A perda do filho é coisa de Plutão. Só para entender melhor. Mas, como disse, a perda nem sempre é a morte: pode ser o afastamento, a distância, o alheamento... De qualquer forma é sempre uma dor imensa: incontável.

Há perdas que nem se percebe que perdeu. Só se percebe quando já aconteceu, tempos depois. Há perdas que, entretanto, percebe-se desde o início e se observa como um navio se afastando lentamente em direção ao horizonte. Quando é Plutão, o navio, a gente sabe que não existe a possibilidade de volta. É a nau de Caronte que nos deixa no inferno.

Quem luta contra Plutão, perde! Perde e se arrasa, pois conhecerá a derrota de todas as suas energias. Uma falência múltipla. Mas não morrerá: ficará inválido na dor. Viverá a dor até a última gota de amargura.

Assim, só existe uma maneira de neutralizar Plutão em nossa vida. Mais que neutralizar é uma verdadeira alquimia: podemos tornar Plutão positivo! Como se trata de uma força universal, pois Plutão representa a nossa porta para o universo, há uma maneira de transformar a possibilidade de perda em um impulso vital para a transformação do mal para o bem. E essa alquimia passa por uma interação com Plutão: utilizar o impulso para uma transformação pessoal.

Mas como entender Plutão se ele é inexplicável, ilógico, inexorável? Não, ele não é de todo. Ele é inexplicável pela nossa lógica cartesiana. A astrologia de Plutão é uma leitura de linguagem oculta. Para interagir com tal linguagem é preciso desapego de si, é preciso consciência de si. Significa que o mundano de Plutão não é um exercício agradável para o ego. Se vamos com o ego, as feridas serão profundas.

Ao falar com Plutão, dispa-se! Revele a nudez de toda arrogância e de todo desejo material. Tome impulso e deixe-se levar sem perda de consciência de si, nunca! Caronte levar-lhe-á em sua barca em direção do Paraíso. Ali você renascerá!

 

 


 

domingo, 2 de março de 2008

do amor e dos quatro elementos

 

 

Antes eu já escrevi sobre os relacionamentos e relacionei a Casa 5 com as práticas sexuais simplesmente sexuais: o sexo pelo sexo, sem ligações afetivas de qualquer natureza. Apenas pelo prazer do jogo e do contato sexual. Eu chamaria de práticas sexuais pueris. No meu entender, obviamente, quando se fala em sexo, não se fala em amor, embora o sexo possa ser um componente do amor. Mas, quando se fala em amor, haveremos de pensar também de ligações não obrigatoriamente com sexo envolvido. Há relações que não se cogita o sexo. Aqui, quando falar de amor, estarei falando de amor com sexo envolvido, ou a sua negação veemente, porque a negação sexual geralmente é resultado de um entrave de natureza psíquica. Mas não quero me adentrar no campo das patologias psíquicas.

O amor é um sentimento que transcende o próprio sentimento. Dependendo de sua intensidade e abrangência poderá sintonizar toda a realidade do sujeito. Mas o amor é essencialmente uma emoção e uma emoção que envolve um encontro. Esse encontro pode ser de fogo, quando há uma ligação de natureza espiritual; de água quando trata-se de uma ligação baseada em sentimentos, carinho, ternura, compreensão; pode ser de ar, quando acontece na esfera da afinidade intelectual, do pensamento, das convicções, da comunicação; pode ser de terra, quando enfatiza o prazer sexual e o interesse material, as riquezas.

Desde já quero afirmar que quando eu falo em amor: um amor real, pleno; estou me referindo a um encontro nos quatro elementos. Sim, porque se um dos elementos estiver fraco, ele estrangulará o relacionamento, desequilibrando-o e tornando obsessiva justamente o que é o ponto fraco. Se faltar o fogo do espírito, que é o que leva à evolução permanente, o amor tenderá a morrer pela monotonia, pela falta de horizontes. Se faltar a água das emoções, o amor será frio, maquinal, e tenderá a morrer pela secura e falta de compreensão. Se faltar ar, será um relacionamento isolado, sem interação e sem compartilhamento de idéias. Se faltar terra, o relacionamento tenderá a ser impossível porque não poderão sobreviver, porque faltará bens materiais de subsistência e vontade para o sexo.

Assim, quando falo em amor, estou falando na presença desses quatro elementos. Com a presença dos quatro elementos o amor prospera e leva a felicidade e a satisfação mútua.

Essas combinações de elementos não estão nos dois amantes, obrigatoriamente. Pode ser que um ou outro sejam mais desenvolvidos em um elemento do que em outro. Desta forma o outro parceiro deverá contrabalançar o primeiro. Um relacionamento equilibrado é um equilíbrio elemental. Por essa razão a gente vê tantas pessoas que são mesmo muito diferentes, mas que se relacionam bem e vivem uma vida inteira juntas: um complementa o outro. Esse complementar não é no sentido barato dos afazeres cotidianos: o amor não é só cotidiano. É também sonhos, planos e porvir. É também o passado que consolida a história.

O estudo dos elementos dos mapas natais dos amantes pode ajudar ao crescimento da relação. Mas será uma luta hercúlea se o quadro de elementos estiver pendente apenas para um lado. Nem sempre vale a pena lutar para ir adiante em um relacionamento. Se isso acontecer a tendência será um comportamento obsessivo que será uma rota de colisão que pode ter resultados trágicos.

Concluindo, por hora, a Astrologia não determina relacionamento. O querer, livre-arbítrio, é que determina. Mas o querer envolve muitas nuances e dependendo do poder que um exerce sobre o outro pode se tornar uma verdadeira ditadura de caráter, com a anulação do querer do Outro.

Ninguém precisa da Astrologia para amar. Também não é um bom caminho para procurar amantes que obedeçam a padrões astrológicos, parece-me isso também uma coisa muito doida. Pensemos assim: dado um relacionamento, quais seriam os seus pontos fortes que poderiam ajudar no desenvolvimento dos pontos fracos. É apenas um exemplo de utilidade.

A Astrologia Transpessoal poderá ajudar, mas não será determinante absolutamente de nada. Pelo menos é assim que eu quero pensar que seja.