domingo, 11 de maio de 2008
dissolvência
Três da tarde. O sol fraco, determinado pela brisa outonal, debruça-se sobre as pessoas encasacadas que circulam ao meu redor. Eu penso, logo não sou. Finjo viver através da mera observação daqueles que passam. E escrevo linhas descritivas, dizendo apenas o que vejo e logo distorço, quando internalizo as minhas sensações de vivências.
Não. As minhas interpretações do mundo e das coisas não são o mundo nem as coisas. Trata-se de uma criação de minha mente que delira. Pensar é estar doente dos olhos(*). Sim, estou doente dos olhos. Já faz algum tempo que a miopia reduziu e, no entanto, perco a nitidez dos contornos e a percepção imagética torna-se embaçada e sem brilho. Já não consigo ver tantas estrelas.
Deliro. O que observo são visões inimagináveis dentro de uma nebulosa. Sou eu que dou os contornos. Que passo por cima deles um lápis delineador traçado por minha mente insana. Crio fantasmas que não existem e não percebo os que existem.
Falham-me também os ouvidos. Um zumbido persiste a todos os silêncios. E distorce as palavras e ruídos que me ambientam. Distorce a música que toca e pede que eu a ouça com ouvidos de maestro. Decodificarei seus sentidos e perceberei que o concerto que toca vai além do infinito.
Mesmo com todo incentivo de cores e sons, eu não permaneço.
Tomo um caminho estranho no oceano de minhas significâncias e dali descolo para o universo paralelo de minhas divagações.
É onde geralmente estou e onde me encontram. É onde o tudo é possível e as ilusões perduram. Lá não é preciso conviver com qualquer senso prático.
Já não me seduz a materialidade das cousas. As cousas inexistentes que eu mesmo crio não precisam da matéria dos mundos. Convivem em um estado adjacente da razão. Não mais cominam com o sentido público do cotidiano. Viajo no tempo. Viajo no ser que sou e que flutua numa insustentável leveza(**).
Mas, no entanto, sempre há uma cela. Não importa o tamanho(***), nem a área circunscrita pelas paredes da própria consciência. As paredes que aprisionam e me encolhem.
Nessa ânsia de caminhar, de dar asas, de imergir, de vagar... sempre esbarro nos limites do que não sou. Sou bem mais limitado do que transpareço. Para que ou para quem transpareço? Para mim mesmo, sempre na mais completa solidão. E não pode ser mesmo diferente.
Nesse percurso, de vez em quando, eu vislumbro um vulto. O desenho etéreo de uma alma humana. Antes, eu procurava desvendar tais vultos na esperança de encontrar neles vestígios de mim mesmo. Hoje, já não me preocupo tanto em transformar essas visões em encontro. Não é ali que me encontro. São almas penadas, como eu, buscando a si mesmas num limbo de desencontros.
Não tenho mais a expectativa de encontro. Já vivo no limite de meu próprio universo e desejo transpassar tais umbrais.
Isso também é mera certeza dos meus delírios. Os umbrais que percebo certamente não existem. São meras construções que eu mesmo construo, para justificar as sabotagens que crio para o meu próprio devir.
Não, nada sei do além-mundo, nem do eu-mesmo. São alucinações que procuram uma utopia.
E, no entanto, cá estou no cotidiano. Sentado em um grande salão e assistindo ao mundo que passa. As pessoas sequer me notam e eu ainda busco um olhar.
E nas vezes que encontro me apavoro e corro desesperado para os meus confortáveis delírios.
03.05.2008
Notas:
(*) Lembrando Caeiro, Aberto em O Guardador de Rebanhos.
(**) Lembrando Kundera em A Insustentável Leveza do Ser.
(***) Lembrando Álvaro de Campos em Là-bas, Je ne Sais Où.
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