quinta-feira, 6 de março de 2008

o fato de esquecer o corpo





Quase nem sinto o sol queimar a minha pele. Pressinto-o de longe, embora saiba, também de longe, que esta noite virá a ardência irreparável da permanência aqui já não sei há quantas horas. O fato é que penetrei por uma vereda de raciocínio que me absorve por completo. Estranha esta sensação de esquecer o corpo. Muito estranha.

Isso me acontece muitas vezes. Não sei quantas ao dia. Percebo que isso tem a ver com a total, ou quase total, ou talvez maior que o normal, concentração que dedico a um certo tipo de pensamento. É isso... é a concentração em alguns pensamentos, algum raciocínio, que me faz esquecer do corpo.

Fico neste lugar até com um pouco de auto-flagelação, talvez por excesso de pretensão: um sacrifício pela ciência, um homem capaz de modificar o mundo. E se deixarem modifico mesmo. Eitcha, sensação de onipotência esta! Pobre pretensioso! Não tão ingênuo quanto aparenta... muito mais perigoso. Muita coisa irá mudar. Com o tempo tudo se desenvolverá, desenvolverão a humanidade, sua história, chegará num determinado ponto que não dará mais para segurar.

O socialismo virá, não resta dúvida! Tudo mudará e a humanidade continuará se desenvolvendo. Novas formas virão. Omessa! (Lembro-me do Arrelia!)

Muito Bem! Satisfeito com as divagações filosóficas, a ardência sobre os ombros começa a se fazer sentir. Daí começo a perceber o lugar em que estou. Realmente, o sol está bastante quente. Uma instantânea vitalidade... quis levantar e procurar uma água. Que lugar é esse? Ah... se me lembrasse do lugar onde haveria de ter saído de manhã! Estou querendo saber o lugar onde estou, mas isto não preocupa muito... bastará achar um pouco de água e tudo estará cem por cento.

À minha frente há uma coisa que eu ainda não havia percebido... Aproximei-me para ver melhor a coisa... Uma pedra! Uma pedra enorme! Maior que um caminhão! Ah... escreveram nela Casas Pernambucanas. Onde será que estou? Eu já vi estas palavras, estas coisas, em algum lugar antes!

Há, à direita da pedra, uma árvore até bem grande. Um tronco possante, folhas abundantes. À direita da árvore... uma estrada. Ah... como eu poderia ter deixado de vê-la! Tudo para mim, à volta, parece novo. Este micro-cenário está crescendo de tamanho. Está me dando a sensação estranha de pequenez. Antes tudo cabia em mim. Redescubro o mundo depois de passar um bom período de tempo concentrado em determinado raciocínio que as circunstâncias, agora, tornaram secundário. Estou voltando a mim de uma maneira extremamente mais lenta... pois desconheço o lugar... mas já vou descobrir tudo! Não me lembro do lugar em que me encontro. Não consigo lembrar de nada que fiz, realmente, neste dia inteiro, a não ser de um raciocínio... Bolas! Que já esqueci!

Devo ter saído, de manhã, de algum lugar "que já vou descobrir qual foi" e me esqueci do corpo! Devo ter ficado horas e horas andando, seguindo alguma trilha que me apareceu pela frente, até este lugar que tem esta pedra, esta árvore e esta estrada que é indício de civilização; assim como a inscrição Casas Pernambucanas na pedra. Ótimas dicas para sair do delírio e retornar à realidade objetiva!

Lógico que sei o que é Casas Pernambucanas. Lógico que sei o que é uma estrada e, mais que isso, que ela deverá levar a algum lugar, na maioria dos casos.

Resolvi, ou melhor: deduzi, que a melhor solução para o problema deste momento seria tomar uma das direções desta estrada. Para um de seus destinos. Esperando que a sorte me ajudasse a escolher o rumo certo e que me deixe o mais próximo possível de algo que me parecesse familiar, pois minhas costas estão ardendo, agora já com certo rigor.

Talvez eu conseguisse encontrar alguma maneira de proteger os ombros e as costas. Onde será que ficou minha camisa? Não costumo sair de casa sem camisa!

A pedra tomava conta, praticamente, de todo o horizonte visual à minha frente. Ao lado da pedra... uma árvore. Ao lado da árvore... uma estrada! E... às minha costas... Uau! Um precipício! Só agora notei... uma ribanceira ... Pudera, absorto em meus pensamentos e meandros lógicos ainda não havia olhado para trás.

Bem... pelo menos descobri mais alguma coisa mas, sinceramente, ainda não posso afirmar onde estou. A paisagem... não sei, nunca vi!

A estrada... a estrada é a solução! Será que isso não vai chegar a um termo? Tomarei o caminho da esquerda, porque o da direita me parece menos simpático. Não por questões ideológicas, mas por questões topográficas... o da direita era um aclive!

Mas ainda não havia dado um passo sequer. Desde que comecei a tomar pé daquilo que se passa eu apenas virei levemente o pescoço e as costas para olhar para trás. Continuo pregado ao solo, hirto, sem camisa, sob um sol muito quente, perto de uma pedra, uma árvore e à beira de um precipício...

Primeira providência: afastar-me da ribanceira. Ação. Muito bem... o corpo obedeceu, nem tudo está perdido.

Bem... acostumado com o movimento, com a saída da inércia, dei mais alguns passos. Com a mudança do ponto de vista pude reparar que havia uma pedra menor, antes encoberta pela maior e sobre ela... lá estava a minha camisa. E sobre ela o meu relógio. Olhei em direção à estrada e vi uma casa. Sim... a casa em que eu estava hospedado com uns amigos. Olhei para o relógio: 8:09 AM! Não havia nem dez minutos que tinha saído da casa! E tudo aquilo aconteceu... aquilo o quê?

Verifico o relógio agora, lembrando-me cristalinamente de tudo. Tudo, enfim, que um ser dito normal costuma lembrar imediatamente quando questionado.





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