Álvaro ouve o despertador. É inevitável. Um misto de culpa e responsabilidade, trazido dos porões da infância, invade a vigília do cérebro. Expulsa uma sensação de conforto que há poucos momentos parecia tão inerente ao corpo que era praticamente imperceptível.
- Droga!
Lentamente, ainda sem beber a percepção do dia, levanta. Sabia-se mais ou menos. As luzes chegavam como bolas de névoa aos centros sensores de impressões. Os amortecedores estavam completamente ativados. Tudo chegava devagar e suavizado, mas o desconforto era crescente e inevitável.
- Mas que merda!
O dia forçava penetrar pelas pálpebras como cunha. Pouco a pouco, pingando na consciência, algumas constatações traziam uma agudez cítrica de cotidiano.
- Bosta!
Até espreguiçar seria doloroso. Um esforço atlético sobre-humano. São momentos predominantemente hipócritas. Hipócritas com prazer. Procurar assumir a preguiça. Avaliar a possibilidade de mandar todos os compromissos para o caralho. Sentir prazer com essa fantasia.
É uma luta inglória, diria o mais infeliz dos estereótipos. Uma coisa, realmente, sem glórias, vulgar, náuseas... O dia sempre vence. Numa oportunidade é o telefone que toca, noutra é a faxineira que chega, noutra é o barulho da rua. Sempre há um golpe de misericórdia sobre o herói do motim que reivindica o ócio e que nem chega a se estabelecer. As coisas, as eternas coisas, que fazem as manhãs serem permanentemente presumíveis e mecânicas. Reinam os inquietantes e desconfortáveis compromissos.
- Cadê a porra do chinelo? E o cu dos óculos? Merda... merda... merda...
Canelada na quina da cama. Tropeção no tapete mal esticado. Chute num copo deixado ao lado da cama... cacos de vidro. Pegar a vassoura... a pá de lixo. O dia já estava todo comprometido. Um caco entra no calcanhar. Uma pinça... onde? Tesoura. Mercúrio Cromo. Derrama... era melhor estar morto!
Aos poucos a consciência vai chegando sem a mínima piedade. Vai tomando conta e substituindo a ira. É quase como um armistício. Álvaro pede penico... arrego! A força da tortura matinal arranca-lhe a consciência da necessidade de racionalizar. Consertar o errado... evitar mais problemas. Submeter-se ã força do cotidiano. Talvez isso seja aquilo que chamam de poder de Deus. Talvez seja isso...
Com a racionalidade chega, também, a depressão. A certeza da própria impotência e fragilidade. O desânimo. Autodefesa: uma água no fogo para fazer um café. Um banho para lavar a alma a frio.
- Nem tudo está perdido... pelo menos não tem ninguém aqui comigo!
Enquanto a água bate no corpo, Álvaro lembra de uma amiga. Uma figura neurótica, certamente, se é que isso quer dizer realmente alguma coisa que a diferencie. Ela precisava de homens, não se sabe prá que. Não se sabe se era para trepar ou por que precisava de um pai; ou, ainda, porque odiava a si mesma e não suportava ficar só, ou porque tinha uma tara sádica de castrar todos os homens que caíssem em sua arapuca... Todas as suposições são válidas para desenhar a mente de uma mulher que , visivelmente, maltratava de todas as maneiras possíveis os seus companheiros, e ao mesmo tempo era tão dependente deles. Dizem que o medo explica tudo e neste caso, certamente, é no mínimo uma da forças componentes.
Lembrando da amiga e esquecendo de si, o tempo do banho ganhou sua própria mecanicidade. Todos o gestos eram inconscientes. A mente estava em outro lugar qualquer. Lembrou de uma conversa de fim de noite na qual ela, nas suas intermináveis justificativas, dizia que acordar com um cara ao lado era um compromisso mais sério que papel passado. Dizia que não havia nada mais insuportável do que ver a cara. Cara, geralmente, dá náusea, dizia ela. E quando há náusea matutina, é sinal que o dia... Álvaro empatizava perfeitamente a náusea.
A amiga, volta e meia, via-se nessa justamente nessa situação. O cansaço e a perversão compunham o quadro com perspectivas nauseabundas de ferrar no sono ao lado de alguém. Quando isso acontecia na casa do outro era mais fácil. Tudo se resumia numa fuga pé-ante-pé pela madrugada até ganhar a rua. Respirar com alívio a manhã nebulosa e tomar café na padaria. Quando isso, entretanto, acontecia na própria casa, a coisa se complicava. Dava vontade de assassinar de assassinar o babaca que parecia dormir tranqüilamente ao lado de uma louca. Sentia vontade de matá-los a dentadas.
Álvaro pensava como seria um suicídio a dentadas. Com todos esses pensamentos, o banho tinha terminado e enquanto se enxugava começava a olhar a imagem no espelho e ver se era possível recuperar alguma coisa.
- É... ainda bem que estou sozinho!
Olhava os fios grisalhos, os olhos vermelhos e imaginava o hálito pesado matinal.
- Preciso parar de comer carne. Ando muito podre. As vísceras não suportam isso.
Escovar os dentes. Pingar colírio. Um pouco de talco no saco e nos pés. Um perfume.
- Nem tudo está perdido...!
A roupa, a farda, a armadura, o colete salva-vidas, a indumentária de sair para a rua. Que coragem!
A sua amiga ainda consegue colocar o objeto do ódio fora dela mesma. Ainda estava num estado padrão para receber os efeitos da psicanálise. Conseguia estabelecer alguma reação com o analista, alguma ligação emocional. Era uma simples neurótica.
Álvaro sentia-se como o Drácula no berçário. Tinha até uma pontinha de orgulho. Era ele um poderoso psicótico. Um irreversível e plutoniano estuprador de psicólogas. E, dependendo do dia, um enrabador de analistas. Mas era tudo fantasia.
A luz incomodava. O desconforto transbordava pelos poros. A sensação era de ter engolido uma maçã inteira.
Com essas sensações, Álvaro sai de casa. Dá a partida no carro e arrancando com tudo, o carro ganha a rua. O trânsito é a primeira grande oportunidade de manifestar seus instintos.
Lá vai ele...
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008
matinata
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