terça-feira, 27 de março de 2012

Sobre a Dor

Às vezes eu fico pensando sobre a dor. Eu não sou cara de fugir da dor, mesmo porque não adianta, quando ela veio foi inevitável. Também não a procuro, mas às vezes a pressinto ao longe, como se fosse dona de uma espera paciente.

Por ter vivido intensamente dores profundas, talvez eu saiba viver profundamente, também, as minhas alegrias de leveza e alguns prazeres rasgados. Não posso me queixar da vida e nem mais rasgar as vestes. Não me queixo da vida porque a vida é, antes de tudo soberana. Deve ser reverenciada como parte do sublime mistério do ser.

Hoje eu não quero falar de alegrias, nem de viscerais prazeres. Eu - hoje, só hoje - estou achando uma extrema tolice máximas que dizem que a felicidade começa dentro de si mesmo. Isso poderia ser verdade em universos perfeitamente egocêntricos. Eu não sou eu mesmo. Eu apenas sou quando sou no mundo. O mundo não muda dentro de nós. O mundo interage com o ser e o se se transforma só quando em contato com o mundo. E o mundo não pode estar dentro de nós.

Nesse estado de consciência eu percebo que a sensibilidade para com o outro está muito relacionada com a nossa vivência da dor. Escute o Canto Triste (Edu Lobo - Vinicius) e perceba como transborda uma amargura que não pode ser mensurada. Descreve toda a distância que existe na morte e a saudade de um amor que persiste, infinito. Não é uma tristeza vã, nem um culto à dor. É um reconhecimento da extrema fragilidade humana frente ao infinito. Ouça Pra Dizer Adeus (Edu Lobo - Torquato Neto) e deixe-se envolver por uma despedida sofrida, mas conscientemente necessária. E ainda há isso aqui para informar que há dores que são mais que inclementes. Dores que são insuperáveis.

Não, não é um culto à dor. É um profundo respeito. Um respeito que é quase uma oração ao cotidiano daqueles que sofrem. Não, não é uma busca de cumplicidade na dor. É uma empatia com vontade de ser bálsamo de silêncio. Porque a dor maior é a dor silenciosa. A dor que não sai no jornal.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Noturno Negro

Esta minha memória
vaga
nebulosa
remonta resquícios de ser
histórias
vultos
Essências de outros
mortos
fantasmas
Encontros deixados de lado
espirais
confusões

Meu pensamento
uma viagem sem bagagem
a percorrer trilhos
a estacionar em gares
pontos de parada
reflexivas pontes
travessias no tempo
do tempo
do longe
do longo
ao longo
de um percurso sem fim.

Minha pequena tristeza
esquecida
colocada de lado
Deitada em uma estação do tempo
num momento há tempo
meus devaneios
minha sensação de presença
omissões de existência
fugas de perspectivas
geometrias
espaços
vazios

É lá que vou todas as noites
E percorro esses caminhos
de uma cidade
que não me lembro
e que
no entanto
pareço saber todos caminhos
atalhos
ruelas

Cenas de filmes antigos
mal absorvidos
cenas fugazes
incompreendidas
que retornam
e ali estou eu
vagando nesses cenários
em ilusões
que um dia foram minhas
e agora desintegram-se
e desvultuam-se
em minha velhice
e no meu contar
noturno
solene
das horas

E a sensação de cansaço
na mente
não passa
E a culpa de viver
permanece

É assim que me encontro
nessas madrugadas
insones
a buscar algo
improvável
inefável
na escuridão da sala
na penumbra da alma
vadia que vaga
sempre ao léu

E se durmo
é como se obtivesse
um passaporte
para um país
tão íntimo
tão distante
inalcançável
quando desperto

Mas que sei que
é para lá
que estou indo
já a caminho
cada dia
cada hora

Há uma cidade
a ser visitada e
um dia desses será.

quinta-feira, 1 de março de 2012

quem sou eu que ora te fala?
quem sou?
há um viés que não sabe de quem
emergem tais palavras
como num sonho
elas brotam e se juntam
formando uma estrutura lógica
se misturam e denotam
uma lucidez estrangeira

numa construção paulatina
os pensares se ligam
num parecer de síntese
uma ideia emergente
da edificação que se permeia
onde as palavras se montam
numa alvenaria concreta
e se projetam
para fora do edifício
em metafísica

e esta lógica que sobressai
e se incorpora às teias
de teus nervos elétricos
formam em ti um sentido
que se revela próprio
e já não subsiste por si só
pois agora impregna-se de ti
vestido de memória aberta
ao universo

[CAlex Fagundes]