quinta-feira, 28 de julho de 2011

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É verdade que a maioria está ávida por se mostrar e não lê o texto que está sendo discutido. Levy diz que aqui nós somos o texto, há uma certa avidez em ser.

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Creio que o Facebook estimula a superficialidade. Por essa razão faz tanto sucesso. As pessoas em geral são superficiais mesmo, embora não gostem nem um pouco que se diga isso

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Fenomenologia e Método

Claudio Alex Fagundes da Silva
junho de 2005



1. As Cinco Fenomenologias

Segundo Moreira (2002:73)[1], citando Spiegelberg, a Fenomenologia pode ser classificada em cinco tendências filosóficas dominantes e sucessivas — que muitas vezes se interceptam — trazidas do pensamento do Século XX.

São elas:

• Fenomenologia Descritiva.

• Fenomenologia Realista.

• Fenomenologia Constitutiva.

• Fenomenologia Existencial.

• Fenomenologia Hermenêutica.




A Fenomenologia Descritiva é a fenomenologia de Edmond Husserl em seu sentido mais puro. Introduzida pela obra Investigações Lógicas (original alemão de 1900-1901), essa fenomenologia procura simplesmente descrever o fenômeno, sem propriamente interpretá-lo. É considerado o tronco fundamental da fenomenologia.

A Fenomenologia Realista...


... enfatiza a busca pelas essências universais de vários tipos de assuntos, incluindo as ações humanas, os motivos e os selfs. (Moreira, 2002:73).

Esse caminho fenomenológico foi seguido por diversas correntes do Direito e outras ciências humanas e artísticas desde quando surgiu, por volta de 1920, na Alemanha.

A Fenomenologia Constitutiva origina-se de outro texto de Husserl: Idéias Relativas a uma Fenomenologia Pura e a uma Filosofia Fenomenológica — original escrito na Alemanha em 1913. Essa corrente se desenvolve com a aplicação dos métodos denominados de redução fenomenológica[2] e redução eidética. Tais procedimentos...


... envolvem suspender a aceitação do estado pré-dado da vida consciente como algo que existe no mundo. (Moreira, 2002:73).

Busca-se, assim, uma base final com a ausência de conceitos previamente formulados para o estudo da natureza — ou o mundo — e as ciências positivas que a estudam.

A Fenomenologia Existencial deriva dos estudos de Martin Heidegger, publicados no original de Ser e Tempo (1926-1927). Na verdade esse movimento se desencadeou na França à revelia de Heidegger a partir da leitura (e interpretação própria) de Ser e Tempo realizada por pensadores franceses, entre os quais podem ser citados Jean-Paul Sartre (especialmente em O Ser e o Nada) e Maurice Merleau-Ponty (especialmente em Fenomenologia da Percepção).

Finalmente, a Fenomenologia Hermenêutica que é método de Heidegger propriamente descrito em Ser e Tempo (Heidegger, originalmente publicado em 1926-1927), segundo o qual a existência humana tem uma natureza interpretativa. Foi também continuado e aprofundado por Hans-Georg Gadamer (especialmente em sua obra Verdade e Método). A diferença deste método é justamente a ênfase dada à hermenêutica, ou seja, o foco na interpretação.

Sobre este último método irei aprofundar, pois ele é base para as minhas últimas investigações.



2. Uma Síntese do Método — uma tentativa de generalização da fenomenologia

Spiegelberg, em sua obra sobre a história da fenomenologia, The Phenomenological Movement (Spiegelberg, 1971:653-701), procura dar um fechamento metodológico à Fenomenologia. Busca uma síntese de método, embora reconheça que existem muitas diferenças entre as diversas teorias fenomenológicas que se desenvolvem até a atualidade.

— Como separar uma fenomenologia entre tantas fenomenologias?

Moreira, referenciando Spiegelberg, afirma que...


... apesar de tantas diferenças, o que há de mais característico na fenomenologia é o seu método. (Moreira, 2004:96).

Neste sentido Spiegelberg busca agrupar em etapas aquilo que considera como sendo as características essenciais do método fenomenológico. Nessa tentativa, ele identifica então sete passos seqüenciais, cada qual com seus procedimentos específicos. Ressalva, entretanto, que não são aplicáveis à pesquisa empírica. Destinam-se a estudos de natureza filosófica[3].

Os passos sugeridos por Spiegelberg — sua obra citada — são os seguintes:

a) Investigação de fenômenos particulares.

b) Investigação de essências gerais.

c) Apreensão de relações fundamentais entre as essências.

d) Observação dos modos de dar-se.

e) Observação da constituição dos fenômenos na consciência.

f) Suspensão da crença na existência dos fenômenos.

g) Interpretação do sentido dos fenômenos.

Os três primeiros passos são considerados por Spiegelberg como sendo de aceitação unânime por parte de todos os que estudam e trabalham com a fenomenologia. Os passos de "d" a "f" apresentam defensores e contestadores. O passo "g" é a chamada redução fenomenológica e o passo "g" é, fundamentalmente, ligado à fenomenologia hermenêutica, desenvolvida por Heidegger em Ser e Tempo (1926-1927).

Moreira (2004:97-102) irá sintetizar o contexto desses sete passos assinalados por Spiegelberg. Farei aqui a minha interpretação dessa síntese — talvez uma síntese da síntese — com algumas observações complementares que julguei necessárias para elucidar.



2.1 Investigação de Fenômenos Particulares

Consiste em três etapas distintas:

• percepção intuitiva do fenômeno;

• exame analítico do fenômeno;

• descrição do fenômeno.


A descrição deve ser antecedida pelas duas etapas anteriores que pressupõem, primeiro, um aprofundamento sensível onde é necessário cuidar para não cair na insensibilidade de não perceber as nuances sutis do fenômeno e, simultaneamente, evitar excessos de sensibilidade que possam trazer distorções de enfoque, enfatizando sobremaneira aspectos secundários do fenômeno.

A descrição pressupõe uma pré-categorização do fenômeno. Sendo também sugerida a descrição por negação, para...


... indicar a unicidade e a irredutibilidade de um fenômeno. (Moreira, 2004:98).

Spiegelberg (1971) considera, também, a impossibilidade de exaustão de todas as propriedades de um fenômeno. Com isso, considera-se que toda descrição de um fenômeno é sempre parcial e seletiva no sentido pessoal do sujeito — o pesquisador — que observa, intui, analisa e descreve.



2.2 Investigações de Essências Gerais

A fenomenologia das essências gerais — também conhecida como intuição eidética — trata da intuição de essências a partir da intuição de particulares, através da percepção, imaginação ou ambas as fontes combinadas.

Paira sobre a intuição eidética um questionamento de misticismo. O termo "eidético" foi introduzido por Husserl a partir de sua obra Investigações Lógicas (Husserl, 1900-1901), ...


... para indicar tudo que se refere às essências, que são objetos da investigação fenomenológica. (Abbagnano, 2000:308).

Com esse termo, intuição eidética, Husserl se refere à busca intuitiva de essências que são objeto da investigação fenomenológica.

Sobre esse questionamento de misticismo, como se trata de metafísica, não se pode dizer que apresenta sentido. O termo "misticismo" tem sido muito utilizado de formas eivadas de preconceitos oriundos do positivismo. Esse preconceito é a causa da inexplicabilidade de inúmeros fenômenos. Não por essa razão seria abandonada, deixada de lado, a intuição eidética, quando dentro do contexto da pesquisa. Mas observa-se que muito ainda tem que ser aprofundado em termos de metodologia científica.

Em busca da intuição das essências, o ponto de partida — segundo este enfoque metodológico — está na intuição de particulares, que serão tratados como casos específicos da essência geral, esta um pressuposto universal. Quando estamos no percurso de prosseguir do particular para o universal, estamos realizando uma operação denominada por Husserl de ideação, segundo nos informa Abbagnano (2000:522).



2.3 Apreensão de Relações Fundamentais entre as Essências

Significa o estabelecimento de conexões entre as essências. Moreira (2002:99) sublinha dois tipos de relações dessa natureza:

Relações dentro de uma simples essência.


Relações entre diversas essências.


Nas relações dentro de uma simples essência o sentido é identificar componentes fundamentais e assessórios de uma essência. Os componentes fundamentais são aqueles necessários para que a essência continue a ser o que é. Os componentes assessórios apenas são compatíveis a essência.



2.4 Observação dos Modos de Dar-se

A fenomenologia deve estudar os fenômenos tanto no sentido do que aparece, como na forma em que aparecem. (Moreira, 2002:99).

Spiegelberg (1971:685) identifica três modos de aparecer (fazer-se mostrar, tornar-se perceptível) um fenômeno:

a) Aparecer do lado ou aspecto do objeto dado, a partir do que conhecemos do objeto como um todo.

b) A aparição do objeto pode ser vista numa perspectiva deformada, sob o ponto de vista do sujeito.

c) O mesmo objeto ainda que observado sob a mesma perspectiva, pode dar-se com diferentes graus de clareza e distingüibilidade.[4]



2.5 Observação da Constituição dos Fenômenos na Consciência

Segundo Spiegelberg (1971), Husserl adota o uso reflexivo do verbo segundo o qual os objetos se constituem — ou se formam — em nossa consciência.

A constituição do fenômeno na consciência consiste em desvelar a forma sob a qual o fenômeno se estabelece e toma forma em nossa consciência.

Assim, pode-se determinar a estrutura de como se constitui por meio de uma análise da seqüência fundamental de formação dessa consciência.



2.6 Suspensão da Crença na Existência do Fenômeno

Trata-se do abandono da atividade natural e a tomada da atitude fenomenológica. Essa atitude é conseguida através da chamada redução fenomenológica (ver a nota descritiva ao final).

A redução fenomenológica é um processo polêmico. Spiegelberg (1971) comenta que Husserl jamais...


... conseguiu um completo sucesso em formular o sentido e função da redução fenomenológica de forma clara e definitiva que satisfizesse ao próprio Husserl. (Moreira, 2002:100).

Spiegelberg (2001) afirma que, dado o caráter polêmico da redução fenomenológica, ela tem sido considerada como uma etapa opcional dentro da seqüência do método, pois a sua usabilidade é contestada por muitos.



2.7 Interpretação do sentido dos fenômenos.

Spiegelberg (2001) afirma que, se incluído, este passo deverá ser obrigatoriamente o último, pois...


... a interpretação encerra qualquer análise. (Moreira, 2002:101).

Comenta que inclui este passo na síntese do método com uma certa hesitação, porque Husserl, embora não tenha rejeitado a fenomenologia hermenêutica, também não a encorajou.

Aqui abandono os estudos da fenomenologia de Husserl com a seguinte questão:

— Até que ponto a fenomenologia de Heidegger é uma continuação da fenomenologia de Husserl?

Incluí esta síntese de Spiegelberg, com a única finalidade de contextualizar a fenomenologia hermenêutica, metodologia de investigação que venho adotando.

Servirá como uma introdução ao método inserido por Heidegger e para observar que Heidegger irá formular uma nova e autônoma fenomenologia e não uma continuação do pensamento de Husserl.

Outra pergunta que se coloca é:

— Até que ponto essa seqüência proposta por Spiegelberg é válida para estudos de fenomenologia hermenêutica?

Isso será visto estudando o método proposto por Martin Heidegger.





3. A Fenomenologia Hermenêutica de Heidegger.

A obra de Heidegger Ser e Tempo é, antes de tudo, uma aplicação da fenomenologia como método. Ao mesmo tempo que se introduz o método, aplica-se o método na recolocação da questão do ser.

Ser e Tempo é uma obra dividida em duas partes antecedidas por uma introdução. É uma obra incompleta. Ao publicá-la, em 1926-7, Heidegger prometia a sua complementação, uma "outra metade", que jamais foi escrita no decorrer de sua vida. Mas não se pode dizer que ele não a tenha continuado. Quem tem às mãos as obras posteriores de Heidegger como, por exemplo, Os Conceitos Fundamentais da Metafísica, publicada originalmente em 1975 — um ano antes de sua morte e quase 50 anos após a publicação de Ser e Tempo — observará que a questão do ser, sua angústia, sua finitude e sua solidão é retomada e continuada. A questão não haveria mesmo de ter uma conclusão porque o ser — e conseqüentemente as respostas às questões sobre esse ser — será sempre inconcluso em conceito de terminalidade.

No primeiro capítulo da Introdução de Ser e Tempo (Heidegger, 2002:27-41), intitulado Necessidade, estrutura e primado da questão do ser, Heidegger irá desenvolver o porquê da recolocação da questão do ser. No segundo capítulo da Introdução, nominado As duas tarefas de uma elaboração do ser — o método e o sumário da investigação (Heidegger, 2002:42-71), Heidegger introduzirá o sentido da fenomenologia hermenêutica, sua formulação e proposta de método.

Farei aqui uma releitura do §7º: O método fenomenológico de investigação — contido nesse segundo capítulo (Heidegger, 2002:56-70) — com vista a uma melhor compreensão da formulação metodológica nele descrita.

Trata-se de uma nota introdutória: o método se desenvolve e toma corpo, enquanto se desenvolve a própria investigação. É a própria investigação que a fundamenta. Especialmente na fenomenologia hermenêutica — que trata da consciência dos fenômenos[5] — o método se desenvolve em si mesmo, na vivência do ser do sujeito enquanto investiga — e se mistura e transforma com — o objeto. O sujeito investiga antes de tudo a si mesmo na relação com o objeto, o sujeito se transforma na relação com o objeto e intervêm na concepção do sentido do mesmo.

A fenomenologia hermenêutica — portanto — realça a confusão entre sujeito e objeto, senão — até mesmo — a abolição dessas fronteiras, enquanto observa os fenômenos e toma consciência deles. Essa é a essência da fenomenologia de Heidegger e, como o ser está sempre em transcendência, a consciência — de si e do objeto — transcende com o próprio ser. Essa formulação transborda consistência na investigação e seduz o investigador a um horizonte sem finitude do saber humano.

Trago aqui um conceito preliminar, preliminar em Heidegger, preliminar aqui: sempre preliminar e sempre inconcluso. A fenomenologia habita em mim e o meu ser é em processo de permanente transcendência, até mesmo enquanto transmito para o papel, ao descrever a minha investigação, ela transcende e eu transcendo nela, em meu ser e na consciência desse ser em mim. A investigação munda (es weltet)![6]



3.1 O Método Fenomenológico de Investigação

A expressão 'fenomenologia' diz, antes de tudo, um conceito de método. Não caracteriza a qüididade[7] real dos objetos da investigação filosófica mas o seu modo, como eles o são. (Heidegger, 2002:57).

A fenomenologia não enfoca especificamente a substância real dos objetos que investiga e, sim, o seu modo de ser. A fenomenologia é, portanto, um método de investigação do modo que as coisas são, as coisas em si mesmas! O verbo ser aqui assume um caráter intransitivo. Pode-se dizer que é uma evidência que sentimos necessidade de observar mais de perto. Incorporá-la em nosso ser!

O termo "fenomenologia" tem dois componentes: fenômeno e logos.

Heidegger, traz uma concepção preliminar e conceitual da fenomenologia de duas maneiras. Na primeira delas ele caracterizará os dois componentes da palavra "fenomenologia" — fenômeno e logos — e, na segunda maneira, procura compor o sentido da expressão, do sentido resultante da junção desses dois componentes.



3.2 O Conceito de Fenômeno

A palavra grega da qual se origina o termo "fenômeno" significa: o que se mostra, o que se revela. Significa tornar-se visível por si só.

Definida a palavra "ente" como sendo tudo aquilo que, pode-se dizer que existem vários modos de o ente mostrar-se por si mesmo.

Há até a possibilidade de o ente como aquilo que, em si mesmo, não é. (Heidegger, 2002:58)

Dentro da palavra grega também está incluso o sentido do que: "se faz ver assim como". O sentido da "aparência", do que "parece e aparece". Nesses sentidos é possível que o ente se apresente de uma forma que na "realidade" ele "não é" assim como se dá e apresenta.

Há, pois, dois significados distintos para "fenômeno":

1. fenômeno como coisa que se mostra;

2. fenômeno como aparecer, parecer, aparência.



Somente na medida em que algo pretende mostrar-se em seu sentido, isto é, algo pretende ser fenômeno, é que pode mostrar-se como algo que ele mesmo não é. Pode apenas se fazer ver assim como... (Heidegger, 2002:58).

Assim sendo, no significado de número 2 está incluso o significado de número 1: o significado originário é "aquilo que se revela", é o significado que sustenta, como verdade, a outra significação.

Heidegger adota e reserva, para a palavra "fenômeno", o significado originário e positivo (o de n° 1), distinguindo esse significado de "aparecer", "parecer" e "aparência" (o de n° 2).

Heidegger distingue, também, "fenômeno" de "manifestação" e ainda mais de "mera manifestação". Cita o exemplo da manifestação de uma doença, ou seja: seus "sintomas".


Manifestação enquanto manifestação de alguma coisa não diz mostrar-se a si mesmo, mas um anunciar de algo que não se mostra. Manifestar é um não mostrar-se. (Heidegger, 2002:59).

Mas a manifestação também não está contida no significado nº 2 de fenômeno. O que se manifesta não pode aparecer e parecer na "manifestação". O fenômeno, aqui na "manifestação", não se mostra em si, mas se pressupõe...


... os fenômenos nunca são manifestações. Toda manifestação é que depende de um fenômeno. (Heidegger, 2002:59)

A palavra "manifestação" pode ter, também, outros significados:

1. manifestar-se no sentido de anunciar-se e como um não mostrar-se em si mesmo;

2. manifestar-se no sentido daquilo que se anuncia em si mesmo, aquilo que, em seu mostrar-se, aponta e indica algo que não se mostra;

3. manifestar-se no sentido autêntico do fenômeno, um mostrar-se a si mesmo;

4. manifestar-se irradiando, em seu mostrar-se, algo que encobre a si mesmo.


Assim sendo, o fenômeno em seu sentido originário e autêntico — o que se mostra em si mesmo — é, ao mesmo tempo, uma "manifestação", mas um tipo específico de manifestação. O fenômeno é constitutivo da manifestação apenas no sentido em que se trata de um anúncio de algo que se mostra.


O fenômeno, o mostrar-se a si mesmo significa um modo privilegiado de encontro. Manifestação, ao contrário, indica no próprio ente uma remissão referencial (...). Esta multiplicidade confusa de "fenômenos" (...) só pode deixar de nos confundir quando se tiver compreendido, desde o princípio, o conceito de fenômeno: o que se mostra a si mesmo. (Heidegger, 2002:60)

Fica, portanto, estabelecido o conceito originário de fenômeno como sendo o sentido adequado para a compreensão da fenomenologia.

O fenômeno no sentido que é utilizado no empirismo é o chamado por Heidegger de conceito vulgar de fenômeno. Um fenômeno físico, por exemplo, o conceito vulgar, não é o conceito fenomenológico de fenômeno.

Conclui Heidegger, sobre o conceito de fenômeno:


Perceber o sentido do conceito formal de fenômeno e de seu uso devido na acepção vulgar é uma pressuposição indispensável para se compreender o conceito fenomenológico de fenômeno, prescindindo de como se deva determinar mais precisamente o que se mostra. (Heidegger, 2002:61-62)



3.3 O Conceito de Logos

O conceito de "logos" nos filósofos gregos é polissêmico, ou seja, assume vários significados que se dispersam sem uma adequada orientação. O significado básico de "logos" é discurso. É uma tradução literal e só terá significado, valor, quando determinado — o que é um discurso?

Os significados posteriores da palavra "logos", especificamente os valores atribuídos pela filosofia e suas...


... interpretações diversas e arbitrárias encobrem o sentido próprio da palavra discurso, que é bastante clara. (Heidegger, 2002 : 62).

Traduz-se "logos" por: razão, juízo, conceito, definição, fundamento, relação, proporção... mas, por que tanta mudança de significados, justamente no uso de uma linguagem das ciências? Entende-se, também, "logos", como proposição e, assim mesmo, excluir o sentido básico de "logos". Bem como no sentido de juízo: uma tradução que pode parecer correta, mas que se afasta do sentido primordial do "logos".

Como discurso, o "logos" significa: revelar aquilo que trata o discurso. Segundo Heidegger, Aristóteles:


... explicitou essa função do discurso. O logos deixa e faz ver aquilo que se discorre e o faz para quem o discorre (médium) e para todos os que discursam uns para os outros. (Heidegger, 2002:62-63)

O discurso deve, antes de tudo, revelar e tornar acessível aos outros o que se tem a dizer.

Como "logos" é um "deixar e fazer ver", ele pode ser verdadeiro ou falso.


Tudo depende de se libertar de um conceito construído de verdade, no sentido de 'concordância'. (Heidegger, 2002:63)

A verdade é, pois, construída em um conceito. Para ser verdadeiro, enquanto "logos", o discurso deve desvelar e mostrar o ente como ser descoberto. Um discurso falso, pelo contrário, encobre ou propõe um a coisa como ela não é.

O "logos" não é o lugar primário da verdade. Mais originária que o "logos" seria a percepção: a percepção sensível de uma coisa. A percepção verdadeira acontece quando o ente se torna acessível nessa percepção e para ela. O exemplo citado por Heidegger é a percepção das cores: a visão descobre as cores. Também, a audição desvela os sons. Pode não haver percepção, mas dado que há, ela fala por si. A percepção...


... percebe singelamente as determinações mais simples do ser e dos entes como tais. (Heidegger, 2002:64)

Somente quando a função do "logos" reside num...


... puro deixar e fazer ver, deixar e fazer perceber o ente (Heidegger, 2002:64)...

... é que "logos" pode significar razão.

A interpretação do "logos" como discurso esclarece a sua função primária.



3.4 O Conceito Essencial de Fenomenologia

O que salta aos olhos, a partir da interpretação de "fenômeno" e de "logos" é o seguinte conceito. Fenomenologia é...


... deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo. (Heidegger, 2002:65)

Diz Heidegger que a ciência dos fenômenos significa:


apreender os objetos de tal maneira que se deve tratar de tudo que está em discussão numa de-monstração e procedimentos diretos. (Heidegger, 2002:65).

Heidegger costuma chamar os objetos de "a própria coisa" e esse conceito está perfeitamente dentro da fenomenologia. A idéia é afastar o que não é demonstrativo por si só. Ou seja, o caráter da própria descrição fenomenológica só pode ser estabelecido a partir do próprio objeto, da própria coisa, que deve ser descrita cientificamente através de fenômenos que vêm ao seu encontro.

Mas, o que seria o conceito de fenômeno, agora dentro de uma visão estritamente fenomenológica? É necessário desformalizar o conceito formal de fenômeno. À luz da fenomenologia o conceito se transforma, se afasta de seu conceito vulgar.

Pergunta Heidegger:

• O que a fenomenologia faz "deixar e fazer ver"?

• O que se deve chamar de fenômeno num sentido privilegiado?

• O que, em sua essência, é necessariamente tema de uma de-monstração explícita?


O que não se mostra diretamente o que é — o que é oculto, velado — ao mesmo tempo está essencialmente ligado ao que se mostra diretamente, constituindo sentido e fundamento. No entanto, o que se oculta, o que se vela, não é o ente e sim o ser deste ente.


O ser pode encobrir-se tão profundamente que chega a ser esquecido, e a questão do ser e do seu sentido se ausentam. (Heidegger, 2002:66)

Para ser analisado segundo a fenomenologia, exige-se que o objeto se torne fenômeno: que se mostre por si só.

Não há nada "atrás" dos fenômenos da fenomenologia. Os fenômenos, obrigatoriamente, revelam-se por si só. O que pode acontecer — e acontece freqüentemente — é que aquilo que deveria tornar-se fenômeno pode permanecer oculto. A fenomenologia é importante porque, observados aprioristicamente, muitas vezes os fenômenos não se dão. Não se revelam por si só. Em oposição ao conceito de fenômeno está o conceito de velamento, de encobrimento.

Há diversos modos de velamento de fenômenos:

1. Um fenômeno pode manter-se encoberto por nunca ter sido descoberto. Aqui nada se conhece ou desconhece do fenômeno.


2. Um fenômeno pode estar entulhado. Ou seja, o fenômeno foi descoberto, mas depois foi soterrado.


3. O fenômeno pode estar desfigurado em sua aparência. Muitas vezes o fenômeno é só parcialmente encoberto, ou desfigurado, requerendo uma hermenêutica de dedução contínua.


4. O fenômeno pode estar desvirtualizado. Neste caso perde a sua solidez, transforma-se em uma idéia solta no ar e transmite uma compreensão vazia.


Com relação a essa última possibilidade de petrificação, endurecimento e inapreensão daquilo que se apreendeu como fenômeno, encontra-se no próprio trabalho concreto da fenomenologia. A dificuldade da investigação fenomenológica está em torná-la crítica de si mesma, sem perder a consistência.

Há necessidade de uma segurança metódica particular desde o ponto de partida da análise nas pesquisas de acesso ao fenômeno, e na ultrapassagem dos velamentos que o encobrem. A apreensão e interpretação de forma originária e intuitiva, sempre reflexiva, passa ao largo da ingenuidade de uma abordagem casual, imediata ou impensada.

Antes de entrar na fenomenologia ontológica (fenomenologia do ser), cabe ressaltar que Heidegger faz uma distinção entre o significado dos termos "fenomenal" e "fenomenológico".

Fenomenal é aquilo que se dá e se pode explicitar segundo o modo de encontro com os fenômenos.

Fenomenológico é o que pertence à demonstração e explicação, que forma o sentido conceitual exigido na investigação.



3.5 Fenomenologia do Ser (Fenomenologia Ontológica)


No sentido fenomenológico, fenômeno é somente o que constitui o ser, e ser é sempre ser de um ente. (Heidegger, 2002:68).

Com esse dizer, Heidegger traz a fenomenologia para a questão do ser, objeto permanente de seu estudo, especialmente em Ser e Tempo. E com essa assertiva ele nos convida a adentrar em seu pensamento que fundamenta a própria fenomenologia ontológica.


É por isso que, ao se visar uma liberação do ser, deve-se, preliminarmente, aduzir o próprio ente de modo devido. Este ente também se deve mostrar no modo de acesso que genuinamente lhe pertence. E, deste modo, o conceito vulgar de fenômeno se torna fenomenologicamente relevante. (Heidegger, 2002:68)

Segundo Ernildo Stein (Stein, 2001:187), Heidegger escolheu a fenomenologia para a elaboração de sua ontologia e que o método fenomenológico, assim seguido, se concretiza na hermenêutica. Assim, nesse parágrafo de Ser e Tempo (o §7) que estamos abordando, Heidegger irá explicar o porquê dessa fenomenologia. A analítica do dasein (o ser-aí) realiza-se através da descrição fenomenológica. Ou seja, além de propor um método, Heidegger o aplica nos desvelamentos da questão do ser e sua compreensão. A hermenêutica de Heidegger (ainda nos diz Stein) tem o sentido de uma ontologia da compreensão. A hermenêutica não é, em Ser e Tempo, uma teoria da interpretação, muito menos a própria interpretação. Heidegger busca a essência da interpretação a partir da hermenêutica, que assume o papel de elemento ontológico da compreensão.

Para Heidegger, a fenomenologia é ontologia e se desenvolve a partir de uma ontologia fundamental: que enfoca o dasein, que muitas vezes pode ser definido como o espírito que habita o ente q que assim é. Fundamenta-se, assim, a própria razão da presença[8]. A compreensão é o próprio modo de ser do dasein, quando existência. E existência é o percurso do ser no tempo.

Assim, pode-se observar que a própria obra Ser e Tempo de Heidegger está impregnada e constituída através de uma fenomenologia. Ao desenvolver o seu pensamento, Heidegger nos de-monstra o método.



4. Conclusão

A finalidade deste estudo não foi de criar uma "fórmula" sintética para a aplicação do método fenomenológico. Antes de tudo, trata-se de um exercício de compreensão — diria Heidegger: uma hermenêutica — da própria fenomenologia.

Nesse exercício de compreensão, busca-se o desvelamento de sentidos ocultos nos textos disponíveis e que abrangem o método fenomenológico, sem propriamente defini-lo, como seria vulgar procurar. Seria impossível essa definição vulgar.

Obedecendo a Heidegger, essa compreensão hermenêutica parte do dasein e o dasein é o próprio sujeito que busca a compreensão realizando, assim, uma fenomenologia. Como cada investigador é dono de sua própria historicidade — sua própria existência de ser ao longo do tempo — pode-se observar que o sujeito — enquanto investigador — desenha e progride na sua própria e peculiar fenomenologia. Por essa razão é que Heidegger indica o dasein como ponto de partida de toda fenomenologia. Diz que essa é a ontologia fundamental e a única forma de se colocar diante do problema cardeal da questão do ser. E a fenomenologia é, antes de tudo, um estudo do ser.

Heidegger dirá:


Da própria investigação resulta que o sentido metódico da descrição fenomenológica é interpretação. (Heidegger, 2002:68)

Assim sendo, faz sentido a hermenêutica e o método se desenvolve em si. Como a fenomenologia se desenvolve em uma busca da compreensão, Heidegger irá dizer que a própria filosofia é uma fenomenologia ontológica e universal que parte da hermenêutica do dasein — o ser que habita o sujeito.

Enfim, não há, numa analítica fenomenológica, a possibilidade de não o próprio sujeito como ponto de partida. E, assim sendo, o próprio sujeito — enquanto dasein — fundamenta a hermenêutica da compreensão que guia o método fenomenológico.



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Bibliografia

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª Edição. Martins Fontes, São Paulo, 2000.

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método — Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. 5ª Edição. Dois Volumes. Editora Vozes. Petrópolis, Rio de Janeiro, 2003.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 12ª Edição. Dois Volumes. Editora Vozes. Petrópolis, 2002.

HEIDEGGER, Martin. Os Conceitos Fundamentais da Metafísica — Mundo Finitude Solidão. Editora Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2003.

HUSSERL, Edmund. A Idéia da Fenomenologia. 1ª Edição. Edições 70. Lisboa, Portugal, 2000.

HUSSERL, Edmund. Investigações Lógicas: Sexta Investigação. Coleção Os Pensadores. Abril Cultural. São Paulo, 1980.

HUSSERL, Edmund. Meditações Cartesianas — Introdução à Fenomenologia. Madras Editora. São Paulo, 2001.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. Editora Martins Fontes. São Paulo, 1999.

MOREIRA, Daniel Augusto. O Método Fenomenológico na Pesquisa. Editora Thompson-Pioneira. São Paulo, 2002.

SAFRANSKI, Rudiger. Heidegger: Um Mestre na Alemanha entre o Bem e o Mal. Geração Editorial. São Paulo, 2000.

SARTRE, Jean-Paul. O Ser e o Nada — Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Editora Vozes. 13ª Edição. Petrópolis, 2005.

SPIELGELBERG, Herbert. The Phenomenological Movement. Cambridge University Press. New York , 2000.

STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude — Estrutura e Movimento da Interrogação Heideggeriana. Editora Unijuí. Ijuí, Rio Grande do Sul, 2001.
Notas





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[1] Estou usando, aqui, a seguinte notação bibliográfica: (Autor, ano da publicação da fonte:página de referência). Darei sempre preferência, na citação, à obra que tenho disponível em versão para o português.


[2] A redução fenomenológica é uma maneira determinada de executar uma percepção ou simplesmente um procedimento consciente e, com isso, dirigir a atenção não para o percebido, mas para o processo da percepção. Por razões metódicas saímos de uma percepção, mas não inteiramente, só na medida em que conseguimos nós mesmos divisar essa execução.

Vejo uma árvore. Quando percebo minha percepção da árvore, noto que confiro à árvore percebida o índice real. Mas se eu apenas imaginar uma determinada árvore ou me lembrar de uma - o que vejo então? Vejo recordações, vejo representações? Não, eu vejo árvores, mas aquelas que estão providas do índice representação ou recordação. Tantos modos de ser quantas forem as árvores. Árvores vistas aqui agora, árvores recordadas, árvores representadas. A mesma árvore que uma vez contemplei alegre porque me dava sombra, da outra vez, se examinada para ver se sua madeira vale a pena economicamente, não será a mesma nessas duas percepções. O seu ser se modificou, e quando o examino de uma maneira chamada objetiva, puramente pragmática, essa também é apenas uma das muitas maneiras pelas quais se permite que a árvore seja. A redução fenomenológica aborda, pois a questão do que afinal é na realidade a árvore, e trata das diversas maneiras de como, e como, o que ela se oferece à consciência, ou melhor, dito, como a consciência a aborda.

Com o exercício da redução fenomenológica colocamos entre parênteses a chamada percepção "natural", e botamos fora de parênteses a realidade externa, perde-se um mundo inteiro, mas apenas para, como diz Husserl em suas Meditações Cartesianas, as "reconquistar em uma consciência de si universal".

A redução fenomenológica é o aspecto decisivo da fenomenologia. Trata-se de uma determinada atenção para com os processos da consciência, também chamados "visão fenomenológica". Uma atenção pela qual se descobre em que medida a vida consciente entra "em jogo" em relação à chamada realidade exterior. (Safranski, 2002:107-8)


[3] Muito embora se questione os limites entre filosofia e ciência.


[4] Ver a conceituação de fenômeno elaborada por Heidegger em Ser e Tempo.


[5] Não confundir o conceito de hermenêutica de Heidegger com o conceito tradicional de hermenêutica. Ao longo do texto é explicado o porquê.


[6] Ver este texto de Heidegger, citado por Safranski (Safranski, 2000:128-129):

Os senhores vêm como de hábito a esse auditório na hora habitual e se dirigem até seus lugares habituais. Os senhores retêm essa vivência de ver os seus lugares ou também podem perceber a minha própria postura: entrando no auditório eu vejo a cátedra. O que é que eu vejo? Superfícies castanhas que se cortam em ângulo reto?

Não, eu vejo outra coisa: uma caixa, na verdade uma maior com outra menor por cima. De modo algum, eu vejo a cátedra sobre a qual devo falar. Os senhores vêem a cátedra da qual se falará aos senhores, na qual eu mesma já falei. Na pura vivência também não há - como se diz - nenhum contexto fundador como se eu visse, primeiro, superfícies castanhas que se cortam, que depois se me apresentam como caixa, depois como púlpito, depois como púlpito para discursos acadêmicos, como cátedra, de modo que eu cole o catedrático na caixa como um rótulo.

Tudo isso é interpretação ruim e falsa, desvio do olhar puro para a vivência. Vejo a cátedra de um golpe; não a vejo apenas isolada, vejo o púlpito como sendo alto demais para mim. Vejo um livro sobre ele, diretamente como algo que me estorva... vejo a cátedra em determinada localização e iluminação, com um fundo...

Na vivência de ver a cátedra algo do mundo em torno se apresenta a mim. Esse mundo-em-torno (Umweltliche)... não são coisas com um caráter significativo determinado, objetos, ainda por cima concebidos como isso e significando isso, mas o significativo é primário, e se me apresenta diretamente, sem nenhum desvio de pensamento sobre o apreender-a-coisa. Vivendo em um mundo em torno, por toda parte e sempre ele me significa, tudo tem caráter de mundo (welthaft), munda (es weltet).


[7] Qüididade: entre os escolásticos, essência ou natureza real de algo.


[8] Não é por futilidade que alguns interpretadores de Heidegger traduzem dasein por pre-sença, como na tradução da Editora Vozes na edição que citei aqui.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Cronos e Kairós

O tempo cronológico (cronos) que marca as nossas festas não é uma lei que nos obriga a sermos felizes. O tempo cronológico, bem como as festas, é meramente uma convenção mundana. O que vale é o tempo interno de cada ser (kairós) na busca de sua transcendência (mudança, transformação, renovação) e o que realmente importa é o que cada um sente. Se não corremos o risco de cair num animismo maquínico que nos obrigaria a ser feliz, privando-nos de nossa autonomia de ser.

É o que o mundo quer: que sejamos felizes no momento adequado e tristes nos momentos adequados. E esse adequado é adequado para o mundo e não para nós. Caindo nessa esparrela deixamos de ser sujeito e viramos mero objeto.

Será que aquilo que o mundo nos apresenta é realmente uma perfeita e harmônica razão para nos despreocuparmos da dor que por ventura sentimos? O tempo cronológico, as datas do calendário, mudam realmente alguma coisa em nós?

Será que o abandonar o velho e simplesmente caminharmos, ávidos, leves, livres e soltos em direção ao novo não é a mesma ideologia do descartável vista por uma fantasia de aparente beleza?