terça-feira, 6 de julho de 2010

há canções



Há canções que pegam de jeito. Que expõem sensibilidades ocultas e, inexplicáveis, tangem uma nota nunca antes percebida. Há canções que vão lá em um lugar que não se sabe onde, reviram tudo, desatam e reatam nós, revolvem emoções incompreendidas, penetram em mistérios. Sim, há canções que revivem dores, ou amores, anestesiados pelo tempo. E fazem chorar sem saber porquê. Há canções que desvelam, que invadem relicários herméticos do ser, assim, sem aviso prévio. 



segunda-feira, 5 de julho de 2010

vilegiatura



Quando a noite se aquieta e todos na casa, na rua, já dormem o sétimo sono. Eu permaneço em vigília. Sou vagabundo do nada fazer a não ser cuidar, para que as dores também adormeçam e os fantasmas não vaguem a esmo. Dou a eles o seu motivo. Deixo-me assombrar pelos meus mortos, para que os vivos durmam em paz e tenham um amanhã correto.

Aqui permaneço. Acolho os uivos que os lobos dedicam à lua. Intercepto os refrões que recitam a cantilena de sofrimentos que não têm perdão. A récita dos tormentos sempre repetidos, numa ladainha, como um rosário de rezas que precisam se mostrar evidentes, que precisam ecoar no silêncio para revelar a inclemência dos tempos que se demoram e não passam, não passam.

Já era hora de estirar no leito, mas lá os murmúrios do silêncio soam mais alto. E um coro em forma de zumbido que vai e volta. E não deixa acostumar-se. E não deixa sublimar-se. Então eu sento e espero pela hora do lobo. Espero atento a cada movimento do vento. Envolvo-me nas expectativas do ranger das tábuas do assoalho e de passos que nunca chegam.

Aí duendes, os pequenos demônios da madrugada, já fazem parte de mim. Incorporados, dilaceram fibras e cartilagens, cutucam intermitentes os anéis fibrosos entre minhas vértebras. Ferroam com agulhas aguçadas o encordoamento dos nervos. E permanecem nesse ritual até que meus sentidos se esmoreçam e, finalmente, se percam em si mesmos.

domingo, 4 de julho de 2010

o homem que sabe o futuro




Um homem disse que pode ver o futuro. Disse que há pessoas invisíveis, mundos invisíveis, pessoas vivendo em um universo paralelo. Traça detalhes de hierarquias e estruturas de um mundo que é invisível e que ninguém vê. Mas ele diz que existe e que é preciso acreditar. Porque esse mundo é bom e que se deve querer esse mundo bom, porque é bom demais. Há tantas coisas nesse mundo bom! Coisas que não existem aqui. Coisas que não temos e que precisamos ter. Ele vê um futuro de pessoas felizes que lá estão.


posta-restante




Não é só a tristeza de envelhecer. Não é só viço da pele que se vai, a turbidez melancólica do olhar. É a certeza de que todas as realizações se quedaram incompletas e levantar-se agora, para fazer o café, tornou-se um esforço difícil. Quanto mais para começar algo, mais difícil, ou menos pequeno. Há algum tempo os amores se tornaram poemas, ou pequenas notas depositadas na posta-restante de um futuro que se duvida. Faz tempo que a vida se torna ficção e tem reservado aos sonhos as suas melhores delícias. E assim se vai e transcorre o cotidiano. E assim se escoa o tempo que resta.