domingo, 11 de maio de 2008

de tudo que existiu





de tudo que existiu
ou sequer existiu
ou que houve um dia
ou sequer aconteceu
de tudo que foi
ou poderia ser
quiçá nada
de tudo aquilo
nada daquilo

não
não são lembranças
são sentimentos presentes
aqui e agora
cá comigo
talvez contigo

o que sei de ti
não és tu
é o que construí de ti
em mim
o que criei de ti
pode ser tudo de ti
pode ser nada de ti

eu te pintei com cores
talvez que não julgas ser
é porque nem eu
nem tu
sabemos de ti
tampouco de mim

eu coloquei nos teus lábios
a cor do desejo
eu imaginei o teu seio
me provendo este desejo

eu considerei
que existem ilusões
que valem a pena
de serem vividas
e esta vale

e se todas as cores
são cores imaginadas
criadas
metamordoseadas
eu te fiz uma proposta
de criação de um quadro

sim
porque o amor não existe
porque o amor é ilusão
mas podemos amar tal ficção

o amor cumpliciado
tramado no oculto de dois
é uma construção de arte
pela alma
de dois indigentes
que se perceberam

e assim é


sobre o trabalho



a não ser
que o trabalho seja a tua vida

não sobrará
muito tempo para viver

vem fala comigo





vem
fala comigo
porque teu silêncio
me encanta

tanto me encanta
que me enlouquece
porque
é um silêncio
que fala

e fala tanto
que eu me confundo
com tantas coisas
que ele diz

e diz mais
muito mais
do que eu poderia
pensar ou imaginar
em meus sonhos

vem e fala
diga qualquer coisa
diga algo que me distraia
desses sussuros do vento
que me contam tudo

vem fala
antes que eu enlouqueça
e te queira ainda mais
do que eu ouso querer
e te quero

dissolvência


Três da tarde. O sol fraco, determinado pela brisa outonal, debruça-se sobre as pessoas encasacadas que circulam ao meu redor. Eu penso, logo não sou. Finjo viver através da mera observação daqueles que passam. E escrevo linhas descritivas, dizendo apenas o que vejo e logo distorço, quando internalizo as minhas sensações de vivências.

Não. As minhas interpretações do mundo e das coisas não são o mundo nem as coisas. Trata-se de uma criação de minha mente que delira. Pensar é estar doente dos olhos(*). Sim, estou doente dos olhos. Já faz algum tempo que a miopia reduziu e, no entanto, perco a nitidez dos contornos e a percepção imagética torna-se embaçada e sem brilho. Já não consigo ver tantas estrelas.

Deliro. O que observo são visões inimagináveis dentro de uma nebulosa. Sou eu que dou os contornos. Que passo por cima deles um lápis delineador traçado por minha mente insana. Crio fantasmas que não existem e não percebo os que existem.

Falham-me também os ouvidos. Um zumbido persiste a todos os silêncios. E distorce as palavras e ruídos que me ambientam. Distorce a música que toca e pede que eu a ouça com ouvidos de maestro. Decodificarei seus sentidos e perceberei que o concerto que toca vai além do infinito.

Mesmo com todo incentivo de cores e sons, eu não permaneço.

Tomo um caminho estranho no oceano de minhas significâncias e dali descolo para o universo paralelo de minhas divagações.

É onde geralmente estou e onde me encontram. É onde o tudo é possível e as ilusões perduram. Lá não é preciso conviver com qualquer senso prático.

Já não me seduz a materialidade das cousas. As cousas inexistentes que eu mesmo crio não precisam da matéria dos mundos. Convivem em um estado adjacente da razão. Não mais cominam com o sentido público do cotidiano. Viajo no tempo. Viajo no ser que sou e que flutua numa insustentável leveza(**).

Mas, no entanto, sempre há uma cela. Não importa o tamanho(***), nem a área circunscrita pelas paredes da própria consciência. As paredes que aprisionam e me encolhem.

Nessa ânsia de caminhar, de dar asas, de imergir, de vagar... sempre esbarro nos limites do que não sou. Sou bem mais limitado do que transpareço. Para que ou para quem transpareço? Para mim mesmo, sempre na mais completa solidão. E não pode ser mesmo diferente.

Nesse percurso, de vez em quando, eu vislumbro um vulto. O desenho etéreo de uma alma humana. Antes, eu procurava desvendar tais vultos na esperança de encontrar neles vestígios de mim mesmo. Hoje, já não me preocupo tanto em transformar essas visões em encontro. Não é ali que me encontro. São almas penadas, como eu, buscando a si mesmas num limbo de desencontros.

Não tenho mais a expectativa de encontro. Já vivo no limite de meu próprio universo e desejo transpassar tais umbrais.

Isso também é mera certeza dos meus delírios. Os umbrais que percebo certamente não existem. São meras construções que eu mesmo construo, para justificar as sabotagens que crio para o meu próprio devir.

Não, nada sei do além-mundo, nem do eu-mesmo. São alucinações que procuram uma utopia.

E, no entanto, cá estou no cotidiano. Sentado em um grande salão e assistindo ao mundo que passa. As pessoas sequer me notam e eu ainda busco um olhar.

E nas vezes que encontro me apavoro e corro desesperado para os meus confortáveis delírios.



03.05.2008



Notas:

(*) Lembrando Caeiro, Aberto em O Guardador de Rebanhos.

(**) Lembrando Kundera em A Insustentável Leveza do Ser.

(***) Lembrando Álvaro de Campos em Là-bas, Je ne Sais Où.